segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

O complexo do Alemão e a república:: Luiz Werneck Vianna

O complexo do Alemão e a república:: Luiz Werneck Vianna
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Com o episódio de ocupação do complexo do Alemão, santuário do narcotráfico encravado em uma região estratégica da cidade do Rio de Janeiro, a experiência republicana brasileira trava uma batalha que não admite recuo. É vencer ou vencer, embora as circunstâncias não lhe sejam afortunadas, quer porque ela não teve como escolher a hora, que lhe chegou de modo inesperado, nem ainda dispõe dos meios e de quadros qualificados a fim de converter uma cidadela de quatrocentos mil habitantes, há décadas vivendo sob uma ordem imposta por senhores de guerra, em um espaço citadino.

Em sua concepção original, a política das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPS) previa a sua imposição primeiramente nas comunidades faveladas de baixo risco, recolhendo experiências e conquistando o apoio da população, daí passando a agir nas mais problemáticas. Nessa escala, certamente o complexo do Alemão deveria ser uma das últimas, se não a última, inclusive pela natureza da sua geografia, a ser objeto de uma UPP. A reação dos narcotraficantes, sob as ordens de núcleos com base nesse complexo de favelas, que desencadearam uma série de ações terroristas em alvos indiscriminados da cidade, obrigou a mudança de cálculo: tornou-se imperativo começar pelo fim.

Concluída com sucesso, a operação político-militar de ocupação daquele território, a sociedade teve diante de si, nas telas da TV, a exposição nua de uma cidade de médio porte que vivia em um mundo paralelo à margem do Estado e de suas leis e serviços públicos, e que tinha aprendido a construir uma rotina em meio a um campo de guerra e às ameaças das balas perdidas. Nas imagens repetidas à exaustão, além das tropelias da incursão policial-militar, viam-se os movimentos das pessoas em suas fainas cotidianas, com suas sacolas de compras, em suas idas e vindas para os lugares do seu emprego, visíveis, em toda parte, os sinais de uma intensa vida mercantil.

Mas, em meio a tantas indicações de uma natureza bem assentada da vida privada, nada havia ali que denotasse a presença do público e do cidadão. Ali estavam indivíduos treinados a buscar suas condições de sobrevivência como seres especializados a viver na bolha da esfera privada, uma das quais, essencial, era a própria ocupação do solo sobre o qual tinham construído suas habitações, principal refúgio para evitar a lei da selva imperante no território.

Ali estava, em uma das principais cidades do país, um espaço em que o exercício da autonomia deveria se confinar à dimensão privada da vida, uma vez que, no mundo da rua, o que cada qual deveria esperar era o estatuto da heteronomia imposta pelos comandos narcotraficantes ou pelo aparelho policial, não sem frequência ocupado por membros da sua banda podre. Sem um lugar institucionalizado para uma fala livre, a comunidade, tal como se constatou, não teve como apresentar qualquer narrativa que exprimisse a situação de terror sob a qual vivia, e nem contou, embora a maioria adulta da população seja eleitoral e faça parte do mundo do trabalho, com uma solidariedade ativa dos partidos e dos sindicatos.

A simples libertação do território é, como se sabe, apenas um primeiro passo. A população inerme, em estado de anomia cívica, destituída de auto-organização, sem vínculos orgânicos com o mundo externo, continua uma presa fácil quer para a reconstituição, em novo formato, dos negócios dos narcotraficantes, quer para sua subordinação a organizações de milícias. Confiar unicamente na intervenção policial-militar, mesmo que permanente, não deve fazer parte das cogitações dos tomadores de decisão quanto ao objeto do complexo do Alemão, alguns com a rica experiência do Haiti. A tópica republicana sai dos livros, e se impõe como um remédio heroico, mesmo para aqueles que sempre a trataram com desdém em nome de nomeadas urgências substantivas.

O paradoxo da situação está no fato de que essa mudança de larga envergadura nas relações do Estado e dos seus governantes com os setores mais sensíveis das classes subalternas - a imensa população que habita as favelas -, se apresente como uma resposta à ação do narcotráfico, que contém, registre-se de passagem, um evidente elemento de rebelião juvenil quanto a um sistema de ordem excludente e discriminador. Se, ali, agora, a república conta com uma oportunidade para criar raiz, deve-se, de algum modo, a eles, pois foi a partir do domínio terrificante que impuseram nos territórios que ocupam, que a demanda por ela se tornou uma questão geral, socialmente necessária, quando ficaram patentes os efeitos perversos de deixar a tantos à margem da cidade, dos seus valores, direitos e oportunidades de vida.

A tarefa é de perder o fôlego e exige o envolvimento de todos, da universidade, dos intelectuais, dos especialistas, dos partidos, sindicatos, associações empresariais, além das autoridades governamentais envolvidas, que, diante da gravidade da situação, não podem mais agir segundo sua própria discrição. Estão maduras as condições para a constituição de um fórum permanente da sociedade civil, agregando um conjunto de inúmeras atividades já existentes a fim de concertar iniciativas comuns.

A república nos veio de cima, sob forma oligárquica, e a conhecemos, pelas longas décadas do processo de modernização, como autocrática. A Carta de 1988 nos apresentou às instituições de uma república democrática, mas, como sabido, ela ainda não é uma ideia popular, pois, contraditório que seja, é essa a possibilidade que se abre com o complexo do Alemão, onde estão dadas as condições para que se rompa com o sertão sem lei rumo à cidade e para que se introduza animação republicana a partir de baixo.

Desta feita, como se vê, a coluna mudou de estilo - foi mais normativa do que analítica.

Deve ser o Natal e a passagem de ano, tempos propícios aos bons augúrios.


Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador do Iesp-Uerj. Ex-presidente da Anpocs, integra seu comitê institucional. Escreve às segundas-feiras

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Reflexão do dia - Luiz Werneck Vianna


"Mais alguns dias e começamos nova década e um novo governo, que não deve ser igual àquele que está passando, queiram ou não os principais envolvidos na passagem do bastão presidencial de Lula a Dilma. Os ecos da crise financeira de 2008 ainda ressoam por toda parte, e teme-se uma recidiva. O neoliberalismo, que confiou no protagonismo dos fatos e apostou na desregulação do mercado, na crença de que ele conheceria mecanismos automáticos de correção de desajustes, é, ao menos por ora, uma página virada na agenda do mundo. Em uma palavra, retorna-se a Keynes e ao ideal de um capitalismo organizado, em que política e economia voltam a se encontrar como dimensões interativas."


(Luiz Werneck Vianna, in: A chegada da república no sertão, Valor Econômico, 20/12/2010)

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

As três formas de poder - Norberto Bobbio


AS TRÊS FORMAS DE PODER
"O filósofo Noberto Bobbio em sua obra A Teoria das Formas de Governo nos diz que se observarmos bem a sociedade, o que ocorre de fato não são os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, mas os poderes econômico, ideológico e político.

O primeiro, poder econômico, é o que se vale da posse de certos bens, necessários e considerados como tais: "numa situação de escassez, para induzir aqueles que não os possuem a manter um certo comportamento, consistente e sobretudo na realização de certo tipo de trabalho" (Idem. Ibidem, p. 955). Estes são os donos dos meios de produção, que têm a posse da terra e das indústrias e têm a empresa em seu nome; em oposição, está o trabalhador que nada tem a não ser a sua força de trabalho (mão-de-obra), única força que tem para, em troca, receber um salário mínimo.

O poder ideológico se baseia na influência das idéias formuladas pelo poder dominante. É claro, tais idéias são expressas, em certas circunstâncias, "por uma pessoa investida de autoridade e difundida mediante certos processos, exercem sobre a conduta dos associados" (Idem. Ibidem, p. 955). Os formadores de idéias têm a função de consenso, isto é, de criar idéias que mantenham as estruturas intactas, preservando a classe dominante. A família, as religiões, a escola, os meios de comunicação sociais e o direito (lei) são alguns dos aparelhos (instituições) que dão sustentação ao sistema.

O poder político tem a estrutura burocrática (administrativa) a seu favor. Quem detém o poder econômico e o poder ideológico tem, conseqüentemente, o poder político. O poder político utiliza-se, muitas vezes, de instrumentos mediante os quais exerce a força física (armas de toda espécie e potência). É o poder que se utiliza da força (coação), empregando as mais diferentes formas de violência, para garantir a permanência dos privilégios de determinado grupo. Todas as três formas de poder se fundamentam e mantêm uma sociedade de desiguais. Isso significa: "dividida em ricos e pobres, com base no primeiro; em sábios e ignorantes, com base no segundo; em fortes e fracos, com base no terceiro; genericamente, em superiores e inferiores" (Idem. Ibidem, p. 955)."

Texto tirado do Bolg Pensar : http://blogpensar.blogspot.com/

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

O cinema visto por novos "olhos"


Sexta-Feira, dia 17 de dezembro de 2010.
Hoje venho aqui postar sobre a experiência que absorvi ao ver, em Juiz de Fora, o primeiro filme em 3D. Não entrarei em detalhes sobre o filme. Não contribuirá em nada para o que será escrito a seguir.
Como venho, há tempos, abrindo um espaço nesse blog para tratar da famosa "Indústria Cultural", penso que a nova tecnologia (3D) é fundamental para compreendermos o que significa a modernidade em que estamos inseridos, ainda mais no que tange os meios de comunicação. Em uma passagem da publicação de Renato Lessa em seu blog grandes quimeras de nonada, o mesmo afirma que se Euclides da Cunha diz que o Sertão é antes de tudo um forte, o brasileiro é antes de tudo um telespectador (LESSA, Renato. 2010).
O que pretendo tratar aqui é a potencialidade que a "indústria cultural" tem para massificar seus produtos, de construir e modelar as preferências do consumidor e depois vender seus produtos fazendo o consumidor acreditar que ele consome por vontade própria, "encanta" a vida de todos nós com seus produtos que encobrem a triste e dolorosa realidade de nossa sociedade, faz com que acreditemos que os fatos novelístiscos e vistos em filmes façam parte da nossa vida real, ditando como devemos agir e pensar ou seja, nos manipulando, e a pior de todas, alienar e neutralizar as forças desse consumidor, através de artifícios de distração, adrenalina, etc. Isso tudo se dá graças aos avanços tecnológicos que vêm acontecendo nessa área. Entre esses avanços tecnológicos cito o "óculos 3D".
Esse "mágico" instrumento tem o poder de nos levar para dentro das telas do cinema, possibilitando, nós espectadores, de nos imaginarmos dentro das cenas que naquela telona se passa. Essa tecnologia nada mais nada menos nos cega, nos integra ao mundo encantado do cinema, lançando sobre nossa realidade desigual e selvagem, construída pelo modo de produção capitalista, um pano preto que nos impossibilita de enxergarmos além daquilo que "eles", a elite intelectual, econômica e política, querem que enxerguemos, aquilo que os tornam grandes, onipotentes, superiores a todos nós, raptando todos os ideais de democracia, igualdade, república, etc.
Se esses "óculos mágicos" fossem iguais a óculos de sol que nos protegem da irradiação Solar e a própria irradiação fosse a verdade que está querendo entrar em nossa consciência, nós apenas viramos as costas para esta ao usarmos tais "óculos". Estamos cooptados por esse sistema desigual, egoísta, que exclui todos os direitos humanos em troca do lucro. Estamos neutralizados, não sentindo dentro de nós a força que temos para mudar tal situação, graças a essa indústria capitalista que nos agride sem causar dor aparente, mas que esconde a verdadeira realidade.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Quem é que manda?



Quinta-feira, dia 16 de dezembro de 2010. É com muita indignação que publicarei o artigo a seguir.
O fato é recente; o ocorrido se deu ontem, dia 15 de dezembro: O reajuste salarial para a presidência, ministros e deputados. Não foi um reajuste pequeno, mas, de 149%, elevando o salário de todos eles à aproximadamente 26 mil reais, o que antes cobria a casa dos 11 mil reais.
Mas o que me incomoda não é o isolado caso do reajuste salarial, pois para mim, consigo pensar que pela postura que o cargo exige, por todo comprometimento e por toda responsabilidade nivelada nacionalmente, o salário possa ser válido. O problema vai muito mais além.
O que pretendo trazer aqui é a capacidade que nossos representantes têm de transformar o público em particular. Isso se transfigura em "Patrimonialismo", nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda, mas, por outro lado, não soa bem aos ouvidos de outros sociólogos. O grande problema pode ser encontrado, primeiramente, no tempo levado para que tal proposta fosse aprovada, tanto na câmara quanto no senado. Foram 5 minutos de muita vergonha na cara, de agressão à população brasileira, cuja indignação até o presente momento só se dá em pensamento, nada de praticidade.
5 minutos foram suficiente para aprovarem tal proposta. Está ai a questão. Por outro lado, gostaria de convidá-lo, leitor, a refletir, pensando em quanto tempo uma REFORMA POLÍTICA seria aprovada. Isso se ela fosse levada ao Congresso. Quanto tempo e qual o índice de aprovação do FICHA LIMPA. Quando que os professores da rede pública conseguirão o seu tão lutado aumento? Quando nossos representantes vão tomar medidas, criar políticas públicas eficientes para erradicar a desigualdade (em nosso país existem famílias que sobrevivem com R$ 108,00 mensais). São perguntas a se fazer em momentos como esse.
Outra questão se refere a situação política, social e econômica do nosso país. Vemos um país direcionado por uma elite burguesa que pensa que o público é privado e vende, num ar coercitivo, suas ideologias a massa, que em sua história de movimentos sociais, sempre se viu reprimida pelo ESTADO, cooptada pelo mesmo, o qual é instrumento dessa elite. Podemos pensar que o antigo salário desses representantes não tinha um "teto" de 11 mil, aproximadamente, mas, pelo contrário, seu "chão" era esse. O uso de "teto" salarial e "chão" salarial serve, aqui, para nos mostrar que o salário pago por nós, sociedade civil, fundadoras do Estado, não é o único dinheiro que eles recebem. Não nos deixemos iludir e mascarar o dinheiro "sujo" que eles recebem de empresas particulares (em suas campanhas, etc.) para atenderem suas necessidades, venderem suas ideologias de maneira coercitiva à sociedade civil. É esse Estado que legaliza a dominação do PARTICULAR SOBRE O PÚBLICO, que favorece o desenvolvimento deste "capitalismo selvagem", que é capaz de matar pessoas em troca de 1 centavo.





Esta na hora de começarmos a agir, pois o "mundo das idéias" não salva ninguém, não muda nada. Transformemos nossos pensamentos indignados em movimentos sociais que levantem as massas, para que lutem por seus direitos.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

"Todo Poderoso Mazembe"


Quarta- Feira, dia 15 de Dezembro de 2010.
Ontem, o Sport Clube Internacional (avaliado em 77,2 milhões de reais), de Porto Alegre, foi derrotado por um inusitado clube do Congo, O "Todo Poderoso Mazembe" (Avaliado em 4,7 milhões de reais). Foi um balde de água fria para todos aqueles torcedores colorados que já cantavam vitória, até para torcedores de outros times (como eu) que estavam apoiando o Inter nesse Mundial de Clubes.
Muito do que eu ouvi na semana que antecedeu o jogo entre esses dois clubes foi a vitória fácil que o inter iria "arrancar" encima do Mazembe. Afinal, um time Africano, sem histórico nenhum no "livro do futebol" seria um alvo fácil para o Colorado Sulista, o qual já tem em sua "garagem" 1 Mundial de Clubes, 3 Brasileiros, etc. etc. Mas o "impossível" aconteceu.
Se compararmos as infra-estruturas de ambos, notaremos que, disparada, a do Inter é melhor. Seu Centro de Treinamento é de causar inveja, sua divisão de base enche os olhos de times como Barcelona, Real Madrid, entre muitos outros. Isso pode ser confirmado com exemplos de jogadores como Alexandre Pato e o garoto Andrigo, nova revelação do Inter.
Porém, se analisarmos o jogo de ontem baseados apenas nas infra-estruturas, no sentido marxiano da palavra, o Inter passaria para a final. Mas não passou. O que está em jogo então? O que explica a vitória do Mazembe? Claro que poderíamos dar infinitas atribuições técnicas futebolísticas para a derrota do inter, mas não é essa minha intenção; mesmo pelo fato de eu não ter tal capacidade técnica. Minha intenção aqui é de afirmar, contrapondo nosso clássico Karl Marx, que as infra-estruturas não determinam as superestruturas, mas que isso se dá numa relação inversa. Ele estava errado. Se essa afirmação marxiana estivesse correta, o Inter seria o grande vencedor e não perderia por 2 x 0. Talvez seja uma empolgada interpretação do futebol visto pela linha de pensamento das Ciências Sociais, mas que nos traz respostas ao que queremos compreender. Talvez fosse muito mais preciso avaliar a derrota do Inter por um viés futebolístico, talvez não. Mas uma interpretação econômica estrutural não é a justificativa para o ocorrido. A linguagem econômica não corresponde com o fato.
Uma coisa eu sei: O Sport Clube Internacional entrou sim com um clima de já ganhei (por seus torcedores ou jogadores), tendo em vista o primeiro jogo contra um time AFRICANO, manifestando uma forma de preconceito (não racial) e à ma fase da Inter de Milão (que nem sabe se passará para a final), também com uma preção da diretoria para que a taça do Mundial de Clubes fosse levantada, repetindo o fato histórico de 2006. Tudo isso, juntado com o nervosismo da estréia e da insegurança dentro de campo levou o Inter a derrota.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Os desafios do Estado na construção do desenvolvimento

Os desafios do Estado na construção do desenvolvimento

Vermelho 9 de dezembro de 2010 às 17:00h

O sistema capitalista revela em suas crises periódicas momentos especiais de profunda reestruturação. São oportunidades históricas em que velhas formas de valorização do capital sinalizam esgotamentos, enquanto novas formas ainda não se apresentam plenamente maduras no centro dinâmico do mundo

Por Marcio Pochmann*, na Margem Esquerda

Nessas circunstâncias, nada mais apropriado para países periféricos do que considerar as possibilidades reais e efetivas de assumir algum grau de protagonismo, até então impossibilitado pela antiga divisão hierárquica do poder mundial. O Brasil, em especial, mostrou condições de aproveitar oportunidades históricas geradas durante momentos de profundas crises e de reestruturação capitalista mundial.

Na Grande Depressão capitalista ocorrida entre 1873 e 1896, houve a sequência de um conjunto de reformas anteriormente reivindicadas. Destacam-se, por exemplo, a reforma eleitoral de 1881, que ampliou a representação nas províncias, a reforma trabalhista de 1888, que aboliu o trabalho escravo, a reforma política de 1889, que acompanhou a implantação da República, e a reforma jurídica estabelecida pela Constituição de 1891.

Dado o conservadorismo da oligarquia rural, os esforços reformistas do fim do século 19 terminaram sendo contidos diante do ciclo de prosperidade proporcionado pela economia primário-exportadora, sobretudo a parte ancorada no café. O anacronismo da República Velha, acomodado pelo liberalismo, postergou a longa transição do agrarismo para a sociedade urbano-industrial.

Com a Grande Depressão iniciada em 1929, o Brasil experimentou mais uma vez uma onda de reformas até então inéditas no capitalismo primário-exportador. Pelas mãos de uma grande e heterogênea frente política liderada por Getúlio Vargas, o país avançou de modo signifi cativo na direção do desenvolvimento de suas forças produtivas urbanas, especialmente industriais, acompanhadas de avanços regulados por políticas sociais e trabalhistas aos ocupados formais nas cidades.

Em menos de cinco décadas, o país tornou-se urbano e industrial, embora somente a metade de sua força de trabalho estivesse resguardada pelo sistema de proteção social e do trabalho, dada a postergação na realização das reformas clássicas do capitalismo contemporâneo (agrária, tributária e social).

Na crise atual do capitalismo globalizado, iniciada em 2008, o Brasil voltou a ter condições de protagonizar um novo salto desenvolvimentista, após a passagem de mais de duas décadas da regressão econômica e social e de sua contradição com a vigência do regime democrático sem paralelo em toda a sua história. Para isso, contudo, o país não deveria se perder em aspectos marginais, especialmente quando se trata de convergir para a consolidação de uma nova maioria política, capaz de sustentar o desenvolvimento brasileiro em novas bases econômicas, sociais e ambientais.

Dois aspectos dessa perspectiva são tratados a seguir em relação ao papel do Estado brasileiro, como nos caso da presença do país no mundo e da reconfiguração socioeconômica interna. Antes disso, contudo, considera-se o movimento maior de reestruturação no centro do capitalismo mundial processado.

Crise e reestruturação capitalista

A crise mundial nesta primeira década do século 21 poderá ser ressaltada no futuro próximo por ter promovido as bases de uma nova fase de desenvolvimento capitalista. Isso porque a crise atual se apresenta como a primeira a se manifestar no contexto do capital globalizado, uma vez que as depressões anteriores (1873 e 1929) ocorreram num mundo ainda constituído por colônias (pré-capitalista) e na presença de experiências nacionais de economias centralmente planejadas.

A nova fase do desenvolvimento depende crescentemente da retomada do capitalismo reorganizado, após quase três longas décadas de hegemonia neoliberal. Os quatro pilares do pensamento único (equilíbrio de poder nos Estados Unidos, sistema financeiro internacional fundado nos derivativos, Estado mínimo e mercados desregulados) tornaram-se cada vez mais desacreditados. A reorganização capitalista mundial pós-crise deve apoiar-se numa nova estrutura de funcionamento.

O tripé da expansão do capital consiste: (i) na alteração da partilha do mundo em função do policentrismo; (ii) na era da associação direta da ultramonopolização do setor privado com o Estado supranacional; e (iii) na revolução da base técnico-científica da produção e do consumo sustentáveis ambientalmente, conforme pode ser identificado na sequência.

Nova partilha do mundo

Com os sinais de fracasso do equilíbrio do mundo hegemonizado pelos Estados Unidos, após a queda do Muro de Berlim, tornou-se mais evidente o movimento de deslocamento relativo do centro dinâmico. Diferentemente da experiência anterior de transição da hegemonia inglesa para os Estados Unidos, consagrada pouco a pouco pela saída da crise de 1929, percebe-se hoje a possibilidade real do mundo pós-crise ser constituído pelo dinamismo policentrista. Ou seja, o fortalecimento de diversos centros regionais do desenvolvimento mundial.

Nos dias de hoje, os controversos sinais de decadência dos Estados Unidos parecem ser mais relativos do que absolutos, tendo em vista a desproporção econômica, tecnológica e militar ainda existente em relação ao resto dos países do mundo. Apesar disso, observa-se que no contexto de emergência da reestruturação no centro do capitalismo mundial ganham maiores dimensões os espaço mundiais para a construção de uma nova polaridade no sul da América Latina, para além dos Estados Unidos, da União Europeia e da Ásia.

No âmbito sul-americano, as iniciativas de coordenação suprarregional remontam ainda à instituição do Mercosul, mas têm ganhado impulso desde a recente articulação supranacional em torno da Unasul e do Banco Sur. Isso tudo, entretanto, não pode representar apenas iniciativas de vontades políticas, pois dependem cada vez mais de decisões governamentais mais efetivas, por intermédio de políticas públicas que procurem referendar o protagonismo de um novo centro regional de desenvolvimento.

Essa possibilidade real de partilha do mundo em novas centralidades regionais implica – além da coordenação de governos em torno de Estados supranacionais – aceitação da parte dos Estados Unidos de uma reestruturação interna. Do contrário, cabe resgatar o fato de a fase de decadência inglesa desde a Primeira Guerra Mundial ter sido demarcada por grandes disputas econômicas e, sobretudo, militares entre as duas principais potências emergentes da época: Estados Unidos e Alemanha.

Ao mesmo tempo, a reação sul-americana à condição de economia exportadora de commodities para a China termina por equivaler ao retorno de uma situação que predominou até o início do século 20: a de exportadora de bens primários para a Inglaterra.

Inédita relação do Estado com a ultramonopolização privada

Na passagem para o século 21, o modelo de globalização neoliberal produziu, entre outros eventos, uma inédita era do poder monopolista privado. Até antes da crise mundial, não havia mais do que quinhentas corporações transnacionais com faturamento anual equivalente a quase a metade do Produto Interno Bruto (PIB) mundial.

No contexto pós-crise, tende a ser um contingente ainda menor de corporações transnacionais a governar qualquer setor de atividade econômica, o que pode resultar numa ultramonopolização privada sem paralelo histórico. Essa realidade possível faz com que os países deixem de ter empresas para que empresas passem a ter países.

A ruína da crença neoliberal explicitada pela crise atual tornou profundamente desacreditadas tanto a vitalidade dos mercados desregulados quanto a suficiência do sistema financeiro internacional assentado nos derivativos. Por isso, espera-se que algo de novo surja das práticas de socialismo dos ricos praticadas na crise mundial por intermédio das enormes ajudas governamentais às corporações transnacionais (bancos e empresas não financeiras).

A maior interpenetração governamental na esfera dos altos negócios ultramonopolistas do setor privado global pode dar lugar ao fortalecimento de Estados supranacionais, o que poderia alterar as condições gerais de produção dos mercados (regulação da competição intercapitalista e apoio ao financiamento das grandes empresas). Em resumo, percebe-se que a viabilização do capital ultramonopolista global tende a depender crescentemente do fortalecimento do Estado para além do espaço nacional.

Diante da maior instabilidade do capitalismo submetido a poucas e gigantescas corporações transnacionais – muito grandes para quebrarem a partir da própria lógica do mercado –, amplia-se o papel do Estado em relação à acumulação de capital. A coordenação entre os Estados supranacionais poderá permitir a minimização das crises diante da regulação da competição intercapitalista. Todavia, o estreitamento da
relação cada vez mais orgânica do Estado com o processo de acumulação privada do capital global deve reverter-se no aprofundamento da competição entre os Estados nacionais.

Revolução na base técnico-científica e perspectivas da produção ambientalmente sustentável

O terceiro elemento do novo tripé do possível surgimento do capitalismo reorganizado encontra-se associado à mais rápida aceleração e internalização da revolução técnico-científica no processo de produção e consumo. Pelo conhecimento produzido até o momento acerca da insustentável degradação ambiental gerada pelas atuais práticas de produção e consumo, sabe-se que a saída da crise global não deveria passar pela mera reprodução do passado.

Nesse sentido, o padrão de produção e consumo precisa ser urgentemente reconfigurado. Para isso, não apenas a matriz energética mundial vem sendo alterada, como as alternativas de sustentabilidade ambiental tornam-se cada vez mais viáveis do ponto de vista econômico (lucrativas). Assim, as penalizações governamentais às atividades de produção e consumo degradantes ambientalmente devem crescer e ser politicamente aceitas, permitindo que um conjunto de inovações técnico-científicas possa fazer emergir um novo modelo de produção e consumo menos encadeador da maior mudança climática.

Da mesma forma, o avanço da sociedade pós-industrial, cada vez mais apoiada no avanço do trabalho imaterial, tende a viabilizar uma profunda reorganização dos espaços urbanos, fruto de exigências do exercício do trabalho em locais apropriados (fazenda para a agricultura e pecuária, fábrica e indústria para a manufatura, entre outros). Pelo trabalho imaterial, a atividade laboral pode ser exercida em qualquer local, não mais em espaços previamente determinados e apropriados para isso, bem como em qualquer horário.

Com isso, a reorganização social em comunidades territoriais torna-se possível, o que pode evitar o comprometimento temporal cotidiano com os deslocamentos de casa para o trabalho e vice-versa, entre outras tarefas comuns. Nesses termos, o fundo público precisará ser fortalecido muito mais com base na tributação de atividades de produção e consumo ambientalmente degradantes, assim como nas novas formas de riqueza vinculadas à expropriação do trabalho imaterial.

Somente a maior ampliação do fundo público poderá permitir a postergação do ingresso no mercado de trabalho a partir dos 25 anos, com o estabelecimento de mecanismos que permitam o processo de educação e aprendizagem para a vida toda e, ainda, jornada laboral de até 12 horas por semana. Tudo isso, contudo, pressupõe maioria política necessária para tornar realidade o que hoje se apresenta como mera possibilidade. Do contrário, o excedente de força de trabalho cresce, com atividades cada vez mais precárias e empobrecedoras, em meio à acumulação de nova riqueza global.

Recente reposicionamento brasileiro

Pela primeira vez desde a Depressão de 1929, a recuperação econômica mundial vem se realizando sob liderança de países não desenvolvidos. China, Índia e Brasil promovem cerca de dois terços da expansão econômica mundial desde a crise global em 2008, reafi rmando a via já observada desde o início da década de 2000. No caso brasileiro, o Estado apresentou-se como peça fundamental do reposicionamento do país no mundo, seja pela decisiva consolidação do gasto social com nova dinâmica econômica, seja pelo planejamento estratégico de coordenação dos investimentos no país.

Por um lado, a força emergente dos impulsos provenientes da economia social tende a se diferenciar do ciclo de expansão produtivo das décadas de 1930 e 1980, quando permaneceu secundária e subordinada às decisões de gastos privado e público. Até então, a máxima de crescer para depois distribuir predominava, implicando continuadamente no tempo um espaço, em geral estreito, para o avanço da autonomia relativa do gasto social. As bases da economia social atual originam-se da Constituição Federal de 1988, que estabeleceu os grandes complexos do Estado de bem-estar social no Brasil, em especial no âmbito da seguridade social (saúde, previdência e assistência social), favoráveis a um avanço importante do gasto social absoluto e relativo ao PIB.

Nos dias de hoje, o gasto social agregado aproxima-se de 23% do PIB, quase dez pontos percentuais a mais do verificado em 1985 (13,3%). Ou seja, de cada quatro reais gastos no país, um vincula-se diretamente à economia social. Se for contabilizado também seu efeito multiplicador (elasticidade de 0,8), pode-se estimar que quase a metade de toda a produção de riqueza nacional encontra-se relacionada de modo direto e indireto à dinâmica da economia social.

O impacto econômico do avanço recente do Estado de bem-estar social no Brasil não tem sido ainda muito bem percebido. Tanto assim que continua a reinar a visão liberal-conservadora que considera o gasto social secundário, quase sempre associado ao paternalismo de governantes e, por isso, passível de corte. De maneira geral, registra-se que o rendimento das famílias depende, em média, de quase um quinto das transferências monetárias derivadas das políticas previdenciárias e assistenciais da seguridade social brasileira.

Antes da Constituição Federal de 1988, as famílias não chegavam a deter, em média, 10% de seus rendimentos das transferências monetárias. Os segmentos de menor rendimento foram os mais beneficiados pela constituição do Estado de bem-estar social, uma vez que em 2008 a base da pirâmide social (10% mais pobres) tinha 25% de seu rendimento dependente das transferências monetárias, enquanto em 1978 essa porcentagem era somente de 7%. Uma elevação de 3,6 vezes.

No topo da mesma pirâmide social (10% mais ricos), as transferências monetárias respondiam, em 2008, por 18% do rendimento per capita dos domicílios ante 8% em 1978. Ou seja, aumento de 2,2 vezes. Adicionalmente, observa-se que, em 1978, somente 8,3% dos domicílios cujo rendimento per capita situava-se no menor decil da distribuição de renda recebiam transferências monetárias, enquanto no maior decil as transferências monetárias alcançavam 24,4% dos domicílios.

Quarenta anos depois, constata-se que 58,3% das famílias na base da pirâmide social recebem transferências monetárias, assim como 40,8% do total dos domicílios mais ricos do país. Houve aumento de 7 vezes para as famílias de baixa renda e de 1,7 vezes para as famílias de maior rendimento.

Em virtude disso, podem-se tirar algumas conclusões a respeito do impacto das transferências previdenciárias e assistenciais sobre a pobreza. Sem as transferências monetárias, o Brasil teria, em 2008, 40,5 milhões de pessoas com rendimento de até 25% do salário mínimo nacional. Com a complementação de renda pelas transferências, o Brasil registra 18,7 milhões de pessoas com até um quarto de salário mínimo mensal. Em resumo, são 21,8 milhões de pessoas que conseguem ultrapassar a linha de pobreza extrema (até 25% do salário mínimo per capita). Em 1978, o efeito da política de transferência monetária impactava somente 4,9 milhões de pessoas.

No caso do efeito das transferências monetárias nas unidades da Federação, identificam-se dois aspectos inovadores que decorrem da emergência da economia social. O primeiro relaciona-se ao maior peso das transferências no rendimento médio das famílias nos estados nordestinos, como Piauí (31,2%), Paraíba (27,5%) e Pernambuco (25,7%), bem acima da média nacional (19,3%). Até aí, nada muito destoante do senso comum, salvo pela constatação de o Rio de Janeiro ser o quarto estado da Federação com maior presença das transferências no rendimento das famílias (25,5%, ante 16,4% em São Paulo).

O segundo aspecto decorre da constatação de que as famílias pertencentes aos estados mais ricos da Federação absorvem a maior parte do fundo público comprometido com transferências monetárias. Assim, a região Sudeste consome 50% do total dos recursos anualmente comprometidos com as transferências previdenciárias e assistenciais da seguridade social, dos quais 23,5% vão para São Paulo, 13,7% para o Rio de Janeiro e 10,9% para Minas Gerais.

A descoberta dessas novidades no interior da dinâmica econômica brasileira atual impõe a reavaliação da eficácia dos velhos pressupostos da política macroeconomia tradicional. A economia social sustenta, hoje, parcela significativa do comportamento geral da demanda agregada nacional, além de garantir a considerável elevação do padrão de vida dos brasileiros, sobretudo daqueles situados na base da pirâmide social.

Por outro lado, o planejamento agregado dos investimentos foi inicialmente retomado pelo bloco de recursos voltados para a Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP) e, na sequência, para o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). Nesse contexto, o país começou a ensaiar os últimos passos da transição da macroeconomia financeira para a da produção. Pelo lado da PDP, o país imprime intensa reestruturação
patrimonial nos setores privados e estatal, com recursos públicos e reposicionamento dos fundos de pensão das empresas estatais.

Liderado pelo BNDES, o país forma também grandes empresas transnacionais (construção civil, alimentos, energia, siderurgia, transportes e outras) cujo objetivo é reinserir-se no espaço restrito da ultramonopolização da competição capitalista mundial, guiada por não mais do que quinhentas empresas transnacionais. Dessas, somente três possuem faturamento anual equivalente ao PIB brasileiro, atualmente o oitavo do mundo.

O estágio atual da reestruturação capitalista faz com que grandes empresas sejam maiores que Estados nacionais, e não sejam mais os países que detenham empresas, mas justamente o inverso. O Brasil, nesse caso, segue tardiamente a trajetória asiática de constituição de grandes empresas globais, após duas tentativas frustradas (na constituição de um grande holding do setor público durante o Plano Cruzado, em 1986, e na privatização dos anos 1990, que transferiu patrimônio público equivalente a 15% do PIB para o setor privado, sobretudo estrangeiro).

Nos últimos três anos, quase um terço do total dos recursos disponibilizados pelo BNDES foram canalizados para somente dez grandes grupos econômicos privados em processo de concentração e fusão. Se se considerar as empresas estatais, chega-se ao resultado de quase dois terços do total dos recursos (286 bilhões de reais) desembolsados pelo banco público para apenas doze grandes empresas nacionais privadas e estatais. Com isso, a coordenação dos investimentos estimulada pelo aparelho de Estado visa reduzir – quase duas décadas depois da equivocada privatização selvagem imposta pelas políticas neoliberais – a dependência e a subordinação do capitalismo brasileiro, cada vez mais associado à lógica do século 19 (produtor e exportador de produtos primários).

Com o deslocamento do centro dinâmico mundial dos Estados Unidos para a Ásia, em especial para a China, o Brasil, assim como toda a América Latina e África, passaram a assumir o papel de principal ofertante de commodities, o que leva passivamente à reprimarização de sua pauta de exportação. A PDP, nesse sentido, projeta o salvamento de alguns setores dessa triste trajetória de subordinação imposta pela trágica condução neoliberal do passado.

Na perspectiva do PAC, percebe-se o planejamento estratégico de concentrar recursos públicos na reconstituição da infraestrutura econômica e social, abandonada pelo neoliberalismo e depauperada por mais de duas décadas de desinvestimentos. Nos setores de energia (elétrica, fóssil, eólica), de saneamento e habitação popular e ainda de ferrovias, aeroportos, portos, estradas, tecnologias e outras, a roda da economia começou a se movimentar, com importantes impactos regionais e locais derivados da volta dos grandes projetos nacionais de reforço à integração nacional.

Dos mais de 1 trilhão de reais de investimentos previstos pelos PACs 1 e 2, quase quatro quintos deles encontram-se direcionados à energia e à infraestrutura urbana. Somente na programação de desembolsos para saneamento e habitação popular, destaca-se que 75% dos recursos são provenientes da Caixa Econômica Federal e visam reduzir o enorme défi cit de moradia que atinge a base da pirâmide social, urbanizando parte das favelas situadas nos grandes centros metropolitanos do país.

Ao mesmo tempo, o conjunto de investimentos conduzidos pelo PAC tende a alterar a dinâmica regional. Com isso, parte do enorme vazio produtivo e ocupacional em grandes áreas do país passa a contar com investimentos que fortalecem a estruturas das atividades econômicas, o que contribui para reduzir o grau de concentração da renda nas regiões centro-sul.

Considerações finais acerca da refundação do Estado

Após 25 anos de consolidação do regime democrático, o Brasil parece constituir esforços importantes rumo ao projeto nacional de desenvolvimento. Ademais do obstáculo de consagrar uma nova maioria política que ouse mais na direção da transformação da crise mundial atual como oportunidade de maior reposicionamento do país no mundo, cabe ainda a árdua tarefa da refundação do Estado sob novas bases. Três podem ser seus eixos estruturantes.

O primeiro consiste numa reorganização administrativa e institucional que viabilize a reprogramação de todas as políticas públicas a partir da matricialidade e da integração setorial de suas especialidades. Enquanto o Estado funciona na forma de caixinhas setoriais (educação, saúde, trabalho e outros) e regionais, os problemas atuais tornam-se cada vez mais complexos e totalizantes, não podendo ser superados pela lógica de organização pública em partes que não se comunicam, quando concorrentes entre si. A fonte disso encontra-se centrada na recuperação do sistema de planejamento democrático e transparente de médio e longo prazos.

O segundo eixo concentra-se na necessária ampliação das políticas distributivas para as redistributivas. Ou seja, a transição da melhor repartição social do orçamento governamental para a expansão da progressividade do fundo público, com a redução da carga tributária sobre a renda do trabalho e a ampliação de impostos, taxas e contribuições sobre a renda do capital (lucro, juros, aluguel e renda de terras). Arrecadando mais e melhor, o Estado passa a alterar a desigualdade medieval que se mantém no Brasil.

O terceiro eixo refere-se à reinvenção do mercado, tendo em vista o poder dos grandes grupos econômicos sobre o Estado. Ademais das exigências de transparência e crescente participação social, o Estado precisa reconstituir-se fundamentalmente para o verdadeiro mar que organiza os micro e pequenos negócios no país, com políticas de organização e valorização do setor por meio da criação de bancos públicos de financiamento de produção e comercialização, fundos de produção e difusão tecnológica e assistência técnica (uma “embrapa” urbana) e de compras públicas. Algo nesse sentido ocorre de modo contido pela força do Sebrae, por crédito consignado e de bancos públicos e pelas novas leis (Lei Geral da Micro e Pequena Empresa e Micro Empreendedor Individual), mas há ainda muito o que fazer, e o cume seria a criação de um ministério específico para isso.

Esses são alguns dos passos que o Brasil precisa percorrer. A refundação do Estado é urgente e inadiável. A oportunidade trazida pela crise mundial é real, mas depende da capacidade interna de organizar uma nova maioria política, capaz de pôr em marcha o projeto nacional do desenvolvimento, sonhado por muitos e que agora ameaça se tornar realidade. O tempo, que é senhor de si, indicará proximamente quando o Brasil deixou de ser o país do futuro.

* Marcio Pochmann é presidente do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea)