sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Reflexão do dia - Marcos Sá Correa



“Se o termo for sincero, o país está entregue a interesses poderosos, sem dúvida, mas insensatos a ponto de defenestrar presidentes do Ibama só para construir um canteiro de obra sem a menor garantia de fazer a obra. Ideia semelhante só passou por Brasília uma vez, há mais de 30 anos, através da cabeça prodigiosa do economista Mario Henrique Simonsen. Como ministro do governo João Figueiredo, ele propôs que o Brasil legalizasse o pagamento de comissões por obras que não pretendia executar. Alegava que assim todos sairiam ganhando. A começar pelos brasileiros, que assim gastariam menos com empreitadas inúteis e perdulárias.

Simonsen estava brincando. Queria simplesmente dizer com isso que muita coisa no país só sai do papel porque alguém está de olho na percentagem da intermediação. Mas a licença "parcial" de Belo Monte, a julgar pelo número de baixas que já causou, está falando a sério, mesmo sem esclarecer se aquilo custará menos de 19 ou mais de 30 bilhões de reais e gerará 11 mil ou 4 mil megawatts. “

SÁ CORRÊA, Marcos. O Ibama virou um negócio insustentável. O Globo, 28/1/2011.

Extraído de: http://gilvanmelo.blogspot.com

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

"Marx e a sociologia"


Ricardo Musse
Ilustração: André Toma
"Na investigação da relação de Marx com a sociologia, não há como subestimar a importância do movimento crítico. Ao longo de toda sua obra, o exame das diversas teorias sociais prevalecentes desemboca, com base no exercício de uma crítica ao mesmo tempo imanente e transcendente, na delimitação de um território próprio denominado pela posteridade de “materialismo histórico”, “sociologia marxista” ou mesmo “sociologia ou teoria crítica”.
Durante o inverno de 1845-1846, refugiados em Bruxelas, Marx e Engels redigiram A Ideologia Alemã. O texto, no entanto, por uma série de motivos, não foi editado e permaneceu assim durante o período em que eles viveram. Numa breve apresentação de sua trajetória intelectual, no Prefácio ao livro Para a Crítica da Economia Política (1859), Marx comenta o manuscrito, destacando que “tratava-se de acertar contas com nossa antiga consciência filosófica. O propósito tomou corpo na forma de uma crítica da filosofia pós-hegeliana (…) Abandonamos o manuscrito à crítica roedora dos ratos, tanto mais a gosto quanto já havíamos atingido o fim principal: a autocompreensão”.
Embora o contexto da referência permita inferir que o manuscrito continha um esboço da teoria ali exposta de forma sintética, Marx, fiel ao seu estilo negativo, prescinde dessa afirmação. A interpretação apenas literal dessas frases, predominante entre as duas primeiras gerações de marxistas, corroborou a tese de que se tratava de um momento superado de um itinerário que transitara da filosofia à economia política. Essa hipótese, no entanto, foi plenamente desmentida pela publicação do primeiro volume do livro, em 1926 (o segundo foi editado em 1932). As ideias apresentadas nesse Prefácio, e que se tornaram uma espécie de resumo oficial da teoria marxista da história, retomam quase que literalmente o texto do manuscrito de 1845-1846.
A Ideologia Alemã tornou-se desde então um texto essencial do corpus marxista. Nela delineia-se pela primeira vez de forma nítida o que pode ser considerado o programa do materialismo histórico, gestado por meio de uma crítica incisiva dirigida simultaneamente à filosofia, à teoria política, à historiografia, à economia política, à teoria social etc.
A atividade prática humana
A autocompreensão à qual Marx se refere surgiu, em grande medida, de um acerto de contas com Ludwig Feuerbach, o mais destacado dos filósofos pós-hegelianos. Nos 11 parágrafos das famosas “Teses sobre Feuerbach”, escritas provavelmente em maio ou junho de 1845 – portanto, alguns meses antes do início da redação de A Ideologia Alemã –, Marx, que havia muito já não era idealista, ao contestar o caráter passivo, abstrato e não histórico do materialismo (incluindo o de Feuerbach), destaca que a sensibilidade, a história e a vida social resultam da atividade prática humana.
Um ponto decisivo da divergência de Marx ante Feuerbach consiste na determinação do conceito de “alienação”. No quarto parágrafo, Marx afirma: “a autoalienação religiosa, o desdobramento do mundo em um mundo religioso e um mundo mundano (…) só pode se explicar pela autodilaceração e pela autocontradição desse fundamento mundano”. Desse modo, a questão da alienação, e assim da própria situa-
ção do homem, é deslocada de “um reino autônomo nas nuvens” ou da compreensão do indivíduo singular para a vida efetiva, que se desenrola como um nexo de relações sociais.
Por conseguinte, a tarefa mais urgente e impostergável para Marx, naquele momento, era delinear uma nova concepção, materialista, da história e da sociedade. Teoria essa que, não custa repetir, nasceu da convivência com e da crítica à filosofia pós-hegeliana, mas que, de certo modo, pode ser estendida a grande parte da tradição cultural e intelectual burguesa.
A estratégia de Marx e Engels para submeter à crítica os jovens hegelianos, evitando o risco de recair no jogo especular de uma crítica da “filosofia crítica”, passa pela remodelação do conceito de “ideologia” – concebido como um descompasso entre o que os indivíduos, grupos e sociedades imaginam ser e o que efetivamente são.
O esforço crítico vincula-se assim ao desenvolvimento de uma teoria apta a compreender os indivíduos efetivos em suas ações concretas, o que aponta para a necessidade de conhecer suas condições materiais de vida e as relações sociais aí engendradas. Esse programa, ao qual Marx se ateve ao longo de sua trajetória, foi levado adiante submetendo à crítica – imanente e transcendente – aquelas que são comumente apresentadas como as três fontes do pensamento marxista: a teoria social alemã, tal como configurada no idealismo alemão e no movimento dos jovens hegelianos; a teoria social inglesa, consubstanciada na economia política; e as vertentes da sociologia francesa iniciadas por Saint-Simon, com seus desdobramentos no socialismo utópico de Fourier e Proudhon.
Embora, em A Ideologia Alemã, Marx e Engels esbocem alguns traços da aplicação desse programa à história universal, o livro quase não trata do mundo moderno. O levantamento das principais determinações da sociedade capitalista tornou-se imprescindível durante a redação do Manifesto do Partido Comunista (1848).Para compreender o momento histórico, Marx expõe a história da gênese e do desenvolvimento do mercado mundial, assim como dos conflitos sociais e das oposições de classe que moldam esse cenário, delineando os principais pontos da sociologia marxista, numa exposição concisa das coordenadas econômicas, sociais, políticas e culturais do mundo moderno.
O Manifesto pode ser lido então como uma espécie de “dialética da modernidade”, salientando a contradição entre o dinamismo inerente ao desenvolvimento das forças produtivas (destacado na metáfora “tudo que é sólido desmancha no ar”) e a estática inerente às relações de produção, que reproduzem a cada momento as formas desiguais de apropriação da riqueza e de dominação social.
Marx apresenta o Manifesto como uma autoexposição do comunismo. Conjugado a essa tentativa de exposição teórica das premissas de um movimento político que mal entrara em cena e já invocava para si o papel de protagonista, Marx compôs um diagnóstico da modernidade que esquematiza, em linhas gerais, tópicos que só serão desenvolvidos detalhadamente em obras posteriores, particularmente no conjunto de textos projetados pelo próprio Marx como uma “crítica da economia política” e cuja formulação mais acabada consiste em O Capital.
Luta de classes
Dito em termos drásticos, de A Ideologia Alemã, bem como de seus inúmeros estudos sobre história, Marx tomou como pressuposto no Manifesto apenas um esquema mínimo, a tese de que “a história de todas as sociedades até o presente é a história das lutas de classes”. Trata-se, portanto, de trazer para o centro do relato da história humana o conflito, a “luta ininterrupta, ora dissimulada, ora aberta”, entre oprimidos e opressores.
Apesar do tom panfletário, inerente a seus objetivos práticos, políticos e pedagógicos, o Manifesto mantém a postura crítica em relação à filosofia da história de A Ideologia Alemã. Em lugar de estabelecer uma teleologia para o desenvolvimento geral da espécie humana, Marx, analisando em bloco o destino do mundo moderno, apenas aponta duas tendências, extraídas da observação do passado histórico, procurando evitar recair na ideia de uma necessidade inerente ao espírito ou em alguma forma de determinismo: “uma reconfiguração revolucionária de toda a sociedade ou uma derrocada comum das classes em luta”.
Na descrição de Marx, a “moderna sociedade burguesa não aboliu os antagonismos de classe”, mas antes colocou novas classes, novas condições de opressão, novas formas e estruturas de luta, sintetizadas no conflito entre burguesia e proletariado.
Marx associa o desenvolvimento histórico-social da burguesia, em especial sua constituição como força política, a uma série de acontecimentos que marcaram a gênese e os desdobramentos do mundo moderno. Desse modo, essa classe é apresentada como o produto de um longo processo, de uma série de revoluções nos meios de produção, transportes e comunicação, por meio do qual ela se desenvolve, economicamente, multiplicando seus capitais e, politicamente, empurrando para segundo plano as demais classes opressoras. Marx adverte assim que, ainda que as demais classes opressoras não sejam suprimidas, doravante quem dá as cartas nos rumos do desenvolvimento histórico e na luta política é a burguesia.
No Manifesto, o mundo burguês é compreendido como uma unidade contraditória entre fatores dinâmicos e invariância estática. O paradoxo de uma sociedade que não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção e, com eles, o conjunto das relações sociais é próprio do mundo moderno. Enquanto os antigos modos de produção assentavam-se, à maneira de uma tradição, na manutenção e conservação de relações fixas e cristalizadas, a sociedade burguesa se reproduz, mantendo-se idêntica somente ao preço de uma contínua transformação que, acarretando a obsolescência e uma incessante destruição de toda a estrutura de produção existente em determinado momento, subverte inclusive o cenário histórico e político.
Essa dinâmica, característica da modernidade, é apresentada e desdobrada no Manifesto sob a forma de um feixe de expansões que ocorrem simultaneamente, em direções e sobre domínios diferenciados. A descrição do papel “eminentemente revolucionário” desempenhado pela burguesia na história moderna pode ser concebida como uma história dos movimentos do agente histórico dessa expansão, o que explica, entre outras coisas, a forte carga irônica dessas passagens, muitas vezes interpretadas erroneamente como uma apologia da burguesia.
Marx descreve os movimentos segundo os quais o capitalismo extravasa o campo das relações puramente econômicas, espraiando-se para outras esferas da vida social. Esse processo caracteriza-se por uma inaudita mercantilização e reificação de todo o domínio social, atingindo inclusive o âmago da subjetividade.
Mas, ao mesmo tempo em que salienta o predomínio das relações mercantis e da reificação sobre o conjunto da vida social, Marx detecta outro movimento expansionista caracterizado pela colonização, ou melhor, pela penetração capitalista sobre áreas e regiões 
econômicas ainda não capitalistas – o que abrange desde áreas do mundo rural, situadas próximo do centro do capitalismo, até os territórios pré-capitalistas, situados nos confins do planeta.
Essa expansão, hoje denominada globalização, vincula-se de forma mais estreita, no Manifesto, com a fase do mercado mundial. Por “mercado mundial”, Marx designa tanto uma forma de concentração industrial como o domínio exclusivo do poder pela burguesia (na época do Manifesto, o recém-implantado Estado constitucional representativo).
Essas duas “expansões” são assinaladas, ao mesmo tempo, como expedientes a que a burguesia recorre para tentar superar as crises do capitalismo. Marx indaga: “Por quais meios a burguesia supera as crises? Por um lado, pelo extermínio forçado de grande parte das forças produtivas; por outro lado, pela conquista de novos mercados e da exploração mais metódica dos antigos mercados”.
A frase “exploração metódica dos antigos mercados”, outra vertente da expansão capitalista, alude à reformulação dos meios e das formas de produção, o que abrange desde a tecnologia empregada na produção até as formas de manejo da mão de obra no interior do processo produtivo. Esse processo, no entanto, não pode ser levado adiante sem a derrubada de obstáculos (jurídicos, culturais etc.) e sem uma intensificação da padronização específica da economia capitalista sobre as demais esferas do mundo social.
O proletariado
A exposição do proletariado, no decorrer do Manifesto, embora possa ser remetida ao quadro histórico-econômico próprio do mundo moderno, não privilegia as mediações econômicas, mas antes a história de sua formação política. De modo geral, Marx salienta que, na mesma medida em que a burguesia, ou melhor, o capital se desdobra, também o proletariado se desenvolve.
No Manifesto, Marx determina, de modo genérico, o proletariado como aqueles que “só subsistem enquanto encontram trabalho e só encontram trabalho enquanto seu trabalho aumenta o capital”. Esse modo de compreender a inserção social do proletariado destaca a submissão do mundo do trabalho à lógica econômica do mercado: os “operários, que têm de vender-se um a um, são uma mercadoria como qualquer outro artigo de comércio e, por isso, igualmente expostos às vicissitudes da concorrência e às oscilações do mercado”.
A dinâmica da expansão, própria do capitalismo, afeta o proletariado no âmago da sua inserção (e integração) social, como força de trabalho, consolidando-se como um dos principais obstáculos à sua organização e formação política. Esse processo foi destacado por Marx como uma forma de reificação típica da situação do trabalho no capitalismo. Primeiro, o trabalhador perde sua autonomia, pela via da expansão da maquinaria e pela ampliação da divisão de trabalho no interior do processo de produção, tornando-se quase um mero acessório da máquina. Mas, sobretudo, ele encontra-se submetido, no interior da fábrica, ao “despotismo” do capital: “Eles não apenas são servos da classe burguesa, do Estado burguês; diariamente e a cada hora eles são escravizados pela máquina, pelo supervisor e, sobretudo, por cada um dos fabricantes burgueses”.
A formação política do proletariado afigura-se, portanto, como uma forma de superação, seja da alienação própria ao mundo do trabalho, seja dos resultados da incessante concorrência entre os trabalhadores gerada pela recorrente reprodução da mão de obra. Nesse sentido, um dos pressupostos práticos do Manifesto, a tarefa de contribuir para a organização do proletariado em um partido político, não pode ser visto como um objetivo descolado da necessidade de superar esses obstáculos.
Pode-se considerar que a aposta de Marx, recorrente ao longo do Manifesto, atribui ao proletariado a possibilidade de desempenhar na história papel equivalente ao exercido pela burguesia. Vale dizer que, para Marx, a classe operária tem a possibilidade de posicionar-se como agente determinante do destino histórico do mundo moderno.
Esse engajamento da classe operária em um projeto de transformação social não é apresentado como um resultado automático e necessário decorrente das condições econômicas e sociais da sociedade burguesa. Marx adverte que os incessantes esforços para organizar o proletariado em um movimento político são, a cada instante, contrariados pela concorrência entre os próprios operários, bem como pela reificação, condições inerentes a sua situação no capitalismo.
A generalização da forma-mercadoria dificulta não só a afirmação do proletariado como sujeito histórico, mas a própria reflexão acerca dos problemas inscritos no cerne da sociedade capitalista, uma vez que a reificação, originariamente atuante no mundo do trabalho, estende-se para todos os setores da sociedade."
Ricardo Musse é professor do
Departamento de Sociologia da USP

Fonte:http://revistacult.uol.com.br/home/2011/01/marx-e-a-sociologia/

"Existe uma sociedade Weberiana?"


Michel Misse
Ilustração: André toma
"Embora seja usual falar-se de uma sociologia “weberiana” e de sociólogos “weberianos”, ou de uma escola “weberiana”, não podemos aceitar rigorosamente essas classificações, a não ser quando se pretende demarcar uma tendência dominante, em certos autores e obras, da influência de conceitos e perspectivas desenvolvidos nos diferentes trabalhos de Max Weber. Mesmo assim, não há nada, nesse caso, comparável, por exemplo, seja à apropriação e desenvolvimento das teorias de Marx no marxismo, seja à apropriação e desenvolvimento das teorias de Freud na psicanálise. Não há nada na obra de Weber que permita desenvolvimento similar ao do marxismo e ao da psicanálise, e isso por duas razões.
Em primeiro lugar, Weber não propõe uma revolução científica ou um deslocamento teórico fundamental, um novo paradigma científico, e nem foram esses os efeitos epistemológicos de sua obra, como, ao contrário, parece acontecer com as obras de Marx e de Freud (tal, pelo menos, como reivindicam marxistas e psicanalistas). O próprio Weber condenava, no marxismo e na psicanálise, sua unilateralidade radical, que os lançava, em seu entender, na metafísica e na disputa de pressupostos últimos aos quais a ciência não poderia responder.
Em segundo lugar, Weber reivindica a tradição acadêmica e científica da pesquisa histórico-social de seu tempo, mesmo quando de sua contribuição original para essa ciência, a sociologia, que também se desenvolve, independentemente de sua obra, e com base em outros paradigmas, em outros lugares. Ainda que proponha métodos e conceitos suficientemente abrangentes e rigorosos para entronizá-lo como fundador de uma escola, sua obra não produziu influência dessa maneira, mas de outra, mais difusa, e também mais coerente com o sentido que a distinguia das demais.
Weber não formou uma escola, como aconteceu com Marx e Freud, e mesmo com Durkheim. Não teve discípulos diretos, com os quais precisasse retificar constantemente o desenvolvimento de seu próprio paradigma. No entanto, é indubitável que no desenvolvimento da sociologia, tal como vem se realizando desde o início do século, a contribuição weberiana é decisiva, fundamental mesmo, por demarcar um de seus principais paradigmas. Curiosamente, embora Durkheim tenha uma posição análoga à de Weber por ter também contribuído com outro paradigma fundamental, e ao mesmo tempo divergente do dele, não é usual falar atualmente de sociólogos “durkheimianos” ou de uma sociologia “durkheimiana”, e isso quando se sabe que a influência de Durkheim foi mais sistemática que a de Weber, a ponto de ter existido uma “escola durkheimiana” na França, o que nunca ocorreu com Weber, nem mesmo na Alemanha.
A influência da obra de Weber, embora crescente ainda quando ele estava vivo, não era do tipo que possibilitasse uma escola. Mesmo essa influência foi drasticamente interrompida, na Alemanha, 12 anos após sua morte, pela chegada dos nazistas ao poder. Suas principais obras, com exceção de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, permaneceram esgotadas e sem reedições durante quase 20 anos, e em grande parte espalhadas em revistas e periódicos de pouco acesso ao público não germânico. Apesar disso, sua influência foi decisiva em obras que foram publicadas antes da Segunda Guerra, algumas das quais vieram conformar grande parte do quadro atual da sociologia. Entre essas obras, basta citar Ideologia e Utopia, de Karl Mannheim; História e Consciência de Classe, de Georg Lukács; Estrutura da Ação Social, de Talcott Parsons; e Fenomenologia do Mundo Social, de Alfred Schutz.
O weberianismo como contrassenso
Desde aqui já se pode notar a abrangência e o tipo de influência que a obra de Weber começará a exercer. Nenhum desses trabalhos é “weberiano” e, no entanto, todos estão numa relação fundamental com a obra de Weber; em todos eles, também, a posição weberiana é posta em situação de interlocução, de diálogo com outros pensadores-chave; Lukács e Mannheim, de modo diferente e pesos desiguais, põem Weber em relação com Marx, e daí destilam suas contribuições originais; Parsons põe Weber em relação com Durkheim e Pareto; Shutz coloca Weber em relação com Husserl.
Para cada uma dessas posições, enfatiza-se um aspecto da obra de Weber. Pode-se dizer que são Webers diferentes os que saem dessas posições: um Weber subsumido no marxismo hegeliano de Lukács; um Weber que retifica e modera Marx, na sociologia do conhecimento de Mannheim; um Weber fenomenológico, intuicionista, neoidealista, na “síntese” de Shutz. No campo substantivo da influência, a abrangência e a variedade não são menores. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo é o rosto mais badalado da influência, mas não é nem a principal nem a mais duradoura, apesar de ter produzido um dos grandes veios polêmicos do século. Weber trabalhou sobre campos extraordinariamente diversos e sua influência acompanha essa diversidade, que vai do direito à sociologia da música, da história econômica à sociologia das religiões, da filosofia da ciência à política alemã. Conceitos como “tipo ideal”, “ação social”, “compreensão”, “autoridade”, “dominação”, “carisma”, “vocação”, “racionalidade”, “burocracia”, “estamentos”, “legitimidade” e muitos outros estão inteiramente orientados, na sociologia contemporânea, pela influência de Weber.
O peso das interpretações pioneiras de Weber, em especial por sua influência sobre toda a sociologia acadêmica mundial, aquela que veio da obra de Talcott Parsons, vem passando por ampla reavaliação crítica há quase cinco décadas. Os resultados dessa reavaliação, que incluiu um renovado interesse dos marxistas por sua obra, têm possibilitado – 90 anos após sua morte – o conhecimento de um Weber muito mais profundo e contemporâneo do que as primeiras interpretações poderiam fazer supor. Não é exagerado afirmar que sua influência, hoje, é comparativamente mais abrangente, mais sistemática e mais rigorosa do que em sua própria época ou em qualquer outra, não obstante manter sua característica de não formar escola. O propalado “weberianismo” é um contrassenso com a própria perspectiva científica de Weber, e o próprio Weber testemunha contra esse equívoco: “Na ciência, sabemos que nossas realizações se tornarão antiquadas em dez, vinte, cinquenta anos. É esse o destino a que está condicionada a ciência: é o sentido mesmo do trabalho científico… Toda realização científica suscita novas ‘perguntas’: pede para ser ‘ultrapassada’ e superada. Quem deseja servir à ciência tem de resignar-se a tal fato”.
A influência de Weber, apesar disso, ultrapassou seus próprios cálculos e merece uma reflexão porque é isso que ainda legitima o emprego de expressões como “weberianismo”. A ciência social carrega a bendita maldição filosófica de sua origem: a política. E como a filosofia e a política, o marxismo e a psicanálise, a sociologia precisa desenvolver-se renovando sempre suas relações teóricas com seus pais-fundadores: a reinterpretação das obras clássicas acompanha e indica esse desenvolvimento, tanto quanto os avanços obtidos nos campos substantivos (empírico e teórico). Não é impossível escrever uma história da sociologia com base na sucessão das reinterpretações de seus clássicos. Essas reinterpretações são tão inesgotáveis quanto sua tendência para avançar para além do que estava originalmente escrito, conferindo-lhe uma nova dimensão, só possível pelo avanço substantivo efetivamente realizado. O que define uma obra como “clássica” é exatamente isto: manter-se contemporânea.
A influência disseminada
Talcott Parsons, cuja obra dominou a sociologia norte-americana por mais de duas décadas (1950-1960) e exerceu – e ainda exerce (embora seja declinante) – influência sobre toda a sociologia acadêmica mundial, travou contato com a obra de Weber ainda nos anos 1930, na Alemanha. Sua tese de doutoramento versava sobre o conceito de capitalismo em Weber e Sombart, o que lhe permitiu preparar o terreno teórico sobre o qual desenvolveria, em 1937, uma original tentativa de síntese sociológica, a primeira elaboração de sua teoria geral da ação. O livro, um grosso calhamaço de mil páginas, intitulado Estrutura da Ação Social, dedicou quase um terço das páginas à interpretação parsoniana de Weber. No entanto, sua apropriação de Weber caracteriza-se pela ênfase posta sobre as normas e valores sociais, em função de sua preocupação em construir as bases de uma teoria da integração social. Se isso lhe permitiu aproximar Weber de Durkheim muito mais facilmente do que é efetivamente possível, facilitou, no entanto, uma apropriação da obra de Weber nos Estados Unidos que, além de incorreta e problemática, enfatizava excessivamente sua utilização conservadora. No entanto, a influência de Weber na sociologia norte-americana, até então pequena, pegou carona no funcionalismo parsoniano e cresceu, até que no fim dos anos 1960 a revisão interpretativa de suas contribuições começasse a ser feita, resgatando-o contra Parsons. Quanto a isso, o pioneiro foi C. Wright Mills, cuja obra reflete uma influência weberiana bastante diferente daquela encontrada em Parsons e sua escola.
Se Parsons procurou aproximar Weber do funcionalismo durkheimiano, Wright Mills fez a aproximação com a tradição marxista, extraindo daí não só uma interpretação, mas um efeito – em suas próprias obras – crítico e politicamente renovador. Mills foi praticamente uma voz isolada numa América conservadora e exposta ao maniqueísmo da Guerra Fria, e uma voz que se calou precocemente (ele morreu aos 47 anos, em 1961). Apesar disso, sua influência na renovação antiparsoniana da sociologia norte-americana dos anos 1970 deveu-se, em grande parte, à extração marxista de sua apropriação de Weber, que lhe permitiu enfatizar, ao contrário de Parsons, os conceitos de classe, de interesse e de conflito. No entanto, ao contrário daquele, Mills jamais tentou uma sistematização conceitual que lhe permitisse construir uma abordagem tão abrangente quanto a parsoniana. Por isso, sua contribuição terminou confinada à sua época.
Lukács, o grande pensador marxista, frequentou assiduamente o Círculo de Heidelberg, que se reuniu na casa de Weber por quase uma década. Nos dois últimos anos da vida de Weber, quando já se tornara marxista, Lukács, ainda sob sua influência, redige alguns dos trabalhos que vão compor seu livro mais célebre. Além de abundantes referências aos trabalhos de Weber, Lukács promove uma inusitada aproximação marxista com a problemática weberiana da “racionalização”, cuja influência posterior não deve ser negligenciada. Mannheim, que foi chamado de “marxista burguês” e de weberiano “marxista” (sic), escreveu suas principais obras entre as décadas de 1920 e 1940. Sua influência, particularmente no campo da sociologia do conhecimento, é decisiva, e tão grande quanto sua pretensão de construir uma ponte entre Weber e Marx que resolvesse algumas das antinomias postas por essa relação. Sua influência sobre Mills permitiu a este se apartar da todo-poderosa interpretação parsoniana de Weber. Do mesmo modo, sua obra permitiu aos funcionalistas manter uma porta aberta ao marxismo (pelo menos nessa área da “sociologia do conhecimento”), como no estudo de Robert K. Merton sobre sociologia da ciência.
No pós-guerra, a influência de Weber alastra-se pela Europa e pela América. Raymond Aron, na França, forja o conceito de “sociedade industrial” e se apoia em Weber para criticar o marxismo. Ralf Dahrendorf, na Alemanha, sob forte influência weberiana, revisa o conceito de classe e, como Aron, substitui capitalismo por “sociedade industrial”, para enfatizar a dimensão mais abrangente (principalmente política) dos conflitos sociais do capitalismo tardio. A sociologia inglesa renova-se com a influência de Weber, principalmente nas obras de John Rex, J. Goldthorpe, David Lockwood, Frank Parkin e Anthony Giddens. Na França, Michel Crozier e Alain Touraine estudam a burocracia e a classe trabalhadora em aberto diálogo com as hipóteses weberianas, e Pierre Bourdieu reinterpreta Weber em seus trabalhos de sociologia da cultura.
Apesar da forte influência de Parsons, a sociologia norte-americana reencontrou Weber de diversas maneiras, desde o pós-guerra até hoje. Obras muito importantes como as de Seymour M. Lipset, Reinhardt Bendix, Robert Bellah, Clifford Geertz, Randall Collins e S. Eisenstadt, entre outros, foram desenvolvidas em constante recuperação e reinterpretação das hipóteses weberianas. Tendências que aparecem na época da Guerra Fria, como a sociologia fenomenológica, a etnometodologia, a sociologia radical, o interacionismo simbólico, retomam Weber exatamente onde Parsons o havia recalcado: no seu “idealismo”, na sua “sociologia compreensiva” e nas minuciosas questões metodológicas.
Em compensação, o “materialismo” de Weber é recuperado pelo marxismo do pós-guerra, que antes lhe havia reservado a indiferença dogmática ou o ataque superficial. Essa indiferença não existiu nos clássicos do marxismo, mas tornou-se dominante no período stalinista. Kautsky, Bukhárin, Rosa Luxemburgo, Gramsci, Lukács e Max Adler citam Weber e quase sempre em apoio às suas próprias ideias. Mas o conhecimento da obra de Weber era ínfimo, se comparado ao que os marxistas contemporâneos passam a ostentar a partir dos anos 1960. A influência de Weber na Escola de Frankfurt é reconhecida e bastante significativa, principalmente na obra de Habermas. A crítica superficial foi abandonada e o rigor com que muitos marxistas reavaliam a obra de Weber não fica nada a dever ao ostentado pelos “weberianos”.
Uma verdadeira história das reinterpretações de Weber e de suas disputas teria, agora, que descer ao campo temático e conceitual. Acompanhar a disputa dos conceitos, a detecção de suas ambiguidades originais, o aparecimento de novos problemas sobre os escombros de problemas que pareciam resolvidos, enfim, teria de ser uma história da constante reatualização de Weber, como a feita brilhantemente por Wolfgang Schluter nas últimas décadas. Aqui entrariam, por exemplo, a penetrante e nem sempre admitida influência de Weber sobre as obras seminais de Norbert Elias e Michel Foucault, apenas para citar dois nomes que continuam em evidência. Naturalmente, isso não pode ser feito aqui. De qualquer modo, será feito por cada sociólogo, em sua área específica de atuação. Isso será inevitável sempre que se descobrir que o sociólogo “weberiano” se dedica a uma coisa “que na realidade jamais chega, e jamais pode chegar, ao fim”.
Michel Misse é professor de sociologia da UFRJ

Fonte:http://revistacult.uol.com.br/home/2011/01/existe-uma-sociedade-weberiana/

Auguste Comte


Ilustração: André Toma
A maioria dos seres humanos, por ser dominada pela afetividade, poderia ter sua existência moldada conforme as exigências da doutrina social do “progresso dentro da ordem”
Lelita Oliveira Benoit
Seduzido pela personalidade do nobre decadente Henri de Saint-Simon (1760-1825), Auguste Comte aceitou ser, a partir de 1817, seu secretário particular por uma quantia mensal de 300 francos. Contudo, logo após o início da colaboração, começou a se desenhar o desentendimento entre o mestre e o discípulo. O jovem secretário tinha como tarefa transformar em textos o pensamento do mestre. No entanto, começou a desenvolver ideias próprias, entrecruzando-as com aquelas que deveria reproduzir. É dessa época a primeira e mais sintética fórmula positivista: “Tudo é relativo, eis o único princípio absoluto”.
As raízes contraditórias do positivismo
Foi também nesses anos de juventude que Comte escreveu um texto, até hoje pouco conhecido, intitulado A Indústria (1817). Não era um texto qualquer. O jovem escritor Comte, em estilo límpido, desenhou o projeto esperado pelo mestre Saint-Simon. Acreditava que somente aprofundadas reflexões políticas, seguidas da elaboração de um plano de “reorganização social”, poderiam erradicar a anarquia que, tendo começado em 1789, com a Revolução Francesa, permanecera até o início do século 19. A Indústria deveria se tornar a primeira pedra do edifício de uma nova e grande Enciclopédia destinada a guiar a reorganização social futura em bases não anarquistas. Em A Indústria, encontram-se reflexões que anunciam a doutrina socialista posterior (como o projeto do planejamento da economia), entrecruzadas a conceitos já propriamente do relativismo positivista. Esse projeto foi abandonado por Comte logo em 1819, mas iniciava-se ali a autêntica história da filosofia positivista.
Ainda naqueles anos de juventude, Comte escreveu outro ensaio, bem mais célebre, no qual são desenvolvidos princípios positivistas. Intitulava–se Plano dos Trabalhos Científicos Necessários para Reorganizar a Sociedade (1822) ou, simplesmente, Opúsculo Fundamental. Desenha-se, nesse ensaio, um vasto plano para reorganizar a sociedade francesa mergulhada na crise e na anarquia posteriores à Revolução Francesa. Após aprofundadas reflexões sobre a natureza espiritual da crise europeia, Comte procura se fazer escutar pelos cientistas que, conforme pensava, constituíam a única autoridade respeitada na Europa decadente, sendo o único poder capaz de dirigir a reorganização social, para convencê-los a tomar em mãos o poder social ou, nas palavras de Comte, ensinar-lhes “a tratar a política de maneira positiva”.
Elabora então Comte, pela primeira vez, o mais célebre de todos os seus conceitos, a teoria ou lei dos três estados. Segundo o positivismo, o espírito humano necessariamente se desenvolveu no decorrer de três fases ou estados: o teológico, o metafísico e o positivo. A expressão “o espírito humano” significa, bem restritamente, “conhecimento científico”. Assim sendo, ao se referir aos três estados do espírito humano, Comte nos remete, acima de tudo, a certas fases da história das ciências. A lei dos três estados, assim concebida, seria um conceito filosófico “compreensível para os cientistas”. De forma sintética, Comte expõe-lhes a história do espírito humano, como se segue: “Pela própria natureza do espírito humano, cada ramo de nossos conhecimentos está necessariamente obrigado, em sua marcha, a passar sucessivamente por três estados teóricos diferentes; o estado teológico ou fictício; o estado metafísico ou abstrato; enfim, o estado científico ou positivo”.
O estado teológico permaneceu enquanto a humanidade, por meio de seus sábios, fazia poucas observações realmente positivas, ou seja, fundadas em observações efetivas dos fenômenos naturais. Como então os fatos conhecidos eram poucos, somente era possível ligá-los por meio de “fatos inventados”. Desse modo, naquele estágio inicial das ciências, para explicar as leis que regem os fenômenos naturais, os sábios recorreriam a “agentes sobrenaturais”. Mas, de qualquer modo, ao menos provisoriamente, as explicações teológicas ajudaram a inteligência humana a sair do estado de torpor e debilidade, próprio da ignorância primitiva, e se aventurar em novas observações, em busca de novos conhecimentos.
O segundo momento ou estado do desenvolvimento das ciências é chamado pelo positivismo de “metafísico” e teria um “caráter bastardo”. Aliás, a palavra “bastardo” parece bastante adequada para qualificar o estado metafísico: diz-se que é bastardo aquilo que é híbrido, que resulta, como nos conhecimentos metafísicos, de enunciações que entrecruzam ideias teológicas com ideias positivistas. Na história do espírito humano, o estado metafísico teria ocorrido quando a ciência fazia tentativas de ligar os fatos por meio de ideias que não são completamente sobrenaturais, mas que não são inteiramente naturais e que são causados por “entidades ou abstrações personificadas”. Por exemplo, para explicar os fenômenos observados no mundo físico, orgânico e bruto, os sábios metafísicos recorrem à natureza, ou seja, a uma espécie de entidade metafísica ou abstração personificada, relativa ao conjunto dos fatos físicos. Na verdade, escreve Comte, o espírito humano, quando no estágio metafísico, se bem que procurando limitar a absurda pretensão de tudo conhecer, restringindo-se aos fatos observáveis, ainda assim tem injustificáveis ambições de conhecer “pelas causas absolutas”.
O que caracterizaria o último estado teórico – o estado positivo – seria que, em sua vigência, os sábios passam a admitir que há limites intransponíveis para a capacidade humana de conhecimento. Imbuídos de tal genuíno espírito positivo, explica-nos Comte, os sábios pretendem, no exercício da ciência, apenas conhecer o que está dado – os fatos e suas leis positivas –, sem se preocupar com a explicação pelas causas e os fins últimos. Desse modo, o conhecimento científico não poderia avançar além de limites claramente estabelecidos, ou seja, nada se poderia conhecer senão as leis de coor-
denação e sucessão dos fenômenos naturais, deduzidas dos fenômenos observáveis.
Segundo Comte, o estado positivo seria o definitivo; tendo-o atingido, o espírito humano não alcançaria patamar mais elevado. Aliás, a história do desenvolvimento progressivo das ciências seria ela própria um fato positivo e observável na história interna de cada ciência. Teria sido com base nessas observações epistemológicas que o positivismo pôde estabelecer a própria lei dos três estados.
Portanto, os estados do espírito humano reduzem-se a modos ou métodos de conhecimento, e a lei dos três estados da ciência foi pensada por Comte, antes de tudo, como uma categoria epistemológica, ou seja, relativa à filosofia das ciências. Como veremos a seguir, é sobre esse fundamento epistemológico que é pensada e construída a física social ou sociologia, nas páginas da obra mais importante de Comte, publicada em quatro volumes, o Curso de Filosofia Positiva (1830-1842).
As raízes biológicas da doutrina positivista do “progresso dentro da ordem”
Refletindo sobre a filosofia positivista, Herbert Marcuse, em seu livro Razão e Revolução, observa que, do ponto de vista da filosofia ocidental, desde os gregos, a expressão “filosofia positivista” não passa de uma contradição nos termos, pois nela desaparece o conteúdo negativo que sempre foi o cerne da filosofia ocidental. Nesse sentido, física social ou sociologia nada mais são do que a continuidade da filosofia positivista; as três palavras recobrindo um único significado: a afirmação daquilo que é, sem sombras negativas, sem obscuridades. Portanto, podemos dizer que o Curso de Filosofia Positiva concretiza o plano filosófico destinado aos cientistas da Europa, sendo ao mesmo tempo a exposição da física social e da sociologia. Já em sua juventude, Comte tinha lido e discutido o célebre livro Esboço para um Quadro Histórico dos Progressos do Espírito Humano, escrito por seu antecessor e inspirador, o teórico e ativista da época do Iluminismo Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat, marquês de Condorcet (1743-1794).
Com base nos conceitos condorcetianos, vinha construindo uma das pedras fundamentais do abrangente campo teórico do positivismo, o conceito de desigualdade. Mas o olhar comtiano, de qualquer modo, manifestava a gênese do declínio do século 18. Segundo comenta Comte, seria necessário abandonar as teses revolucionárias de Condorcet sobre o desaparecimento da desigualdade, por meio de novas revoluções, posteriores à Revolução Francesa. Na verdade, escreve Comte, os seres humanos são, entre si, naturalmente desiguais e assim deve permanecer a sociedade por eles formada, em todas as épocas.
Mas esse “natural”, que determina o caráter de imutabilidade da desigualdade, é muito mais a manifestação de um dado fisiológico do que uma constatação pura e simples de uma realidade social. Na verdade, para Comte, a desigualdade tem sua fonte na natureza fisiológica do homem e assim se torna objeto privilegiado de uma nova ciência. Até agora, existiu uma “física dos corpos brutos” (ou seja: a astronomia, a física propriamente dita, e, em certo sentido, a química) e uma “física dos corpos organizados” (ou seja, a biologia, como história natural, fisiologia e anatomia). Contudo, no século 19, transpassado por permanente anarquia política, se colocava uma física social como estudo das leis imutáveis da sociedade, ou seja, as “leis do progresso dentro da ordem”.
Em outras palavras, isso quer dizer que, como totalidade orgânico-biológica, a sociedade deve ser objeto de uma ciência positiva e ser estudada com a mesma objetividade e neutralidade com que os astrônomos, físicos, químicos e biólogos tratam seus respectivos objetos. Contudo, somente a partir de 1830, com os quatro volumes do Curso de Filosofia Positiva (1830-1842), esse vínculo entre a desigualdade-cérebro se revela nos textos de Comte com peso determinante.
Naqueles anos de juventude de Comte, viajava pelo Europa um famoso médico e anatomista austríaco, Franz Joseph Gall (1758-1828), ministrando aqui e ali cursos de fisiologia e anatomia e chegando a certas conclusões que eram consideradas contrárias à religião cristã. Em suas aulas, Gall demonstrava que as funções fisiológicas do cérebro podem ser descritas como sendo a sede das faculdades intelectuais e morais. A cranologia e sua “teoria das localizações”, que mais tarde serão chamadas de frenologia por Forster e Spurzheim, foi inteiramente desenvolvida por Gall. Ironicamente comentou Hegel, na Fenomenologia do Espírito (1806), que os frenólogos, entre os quais Gall, pensavam que “a razão é um osso”. Recomenda Hegel que os frenólogos abrissem seus próprios crânios para verificar a veracidade de tais afirmações! Ironia à parte, Comte entusiasmou-se com a frenologia, expondo uma versão particular dessa doutrina no Curso de Filosofia Positiva. A frenologia aparece ali como fundamento da classificação social ou da ordem social.
Na “Lição 45” do Curso de Filosofia Positiva, Comte expõe a teoria frenológica de Gall, que considera de valor decisivo para o progresso da biologia. A frenologia, como nos explica Comte, era uma tentativa de estudar, do ponto de vista positivo, “a inteligência humana”. De fato, segundo Gall, as faculdades intelectuais e morais teriam origem orgânica, devendo, por conseguinte, ser objeto dos estudos fisiológicos.
É fácil imaginar o escândalo causado então pela frenologia. De acordo com os ensinamentos de Gall, não existiria, propriamente falando, o “eu”, a “consciência”, a “alma” ou qualquer outra forma de subjetividade humana. Cada capacidade intelectual ou sentimento moral seria, segundo Gall, de natureza puramente fisiológica, constituindo diversos “órgãos cerebrais” contíguos, mas distintos entre si. A unidade a que chamamos “eu”, “alma”, “consciência” seria, portanto, uma ilusão ou tão somente fantasmas metafísicos. Na verdade, tais unidades metafísicas nada têm de misteriosas, sendo explicáveis como sendo o resultado da participação conjunta, nos nossos atos morais e pensamentos, de diversos órgãos cerebrais.
Desde a juventude, nas cartas ao amigo Valat, Comte manifestou grande entusiasmo pela obra de Gall e acreditou que, com o advento da teoria frenológica, começava se apagar o último vestígio da metafísica ocidental, de Descartes em diante. Com as descobertas frenológicas, também o estudo das faculdades intelectuais e morais do homem teria chegado ao seu estado positivo, escreveria Comte nas obras de maturidade, ou seja, no Curso de Filosofia Positiva e também no Prefácio do Sistema de Política Positiva (1851-1854).
Havia, contudo, divergências entre os frenólogos, a principal delas aquela relativa às “localizações das faculdades humanas”. O próprio Comte toma partido em uma dessas polêmicas, sobre a existência de um “órgão do roubo”. O desejo inato de se apropriar das coisas alheias – escreve Comte – “é uma aberração do sentimento da propriedade, este sim, verdadeiramente natural ao homem”. De qualquer modo, Comte acreditava que, no futuro, quando as análises anatômicas do cérebro fossem mais precisas e sofisticadas, com certeza poderíamos então definir exatamente a localização fisiológico-cerebral dos sentimentos morais e das capacidades intelectuais humanas.
De acordo com os estudos anatômicos de Gall, tinha sido possível saber, sobretudo, que as faculdades propriamente humanas – as faculdades intelectuais –, se comparadas ao restante da escala animal, seriam as mais fracas entre todas. Segundo a frenologia, como nos explica Comte, a porção mais volumosa e animal do cérebro humano localiza-se na parte posterior do crânio. Ora, exatamente como ocorreria nos outros animais superiores, aquela parte maior do cérebro seria o simples prolongamento da coluna vertebral. Com essa descoberta frenológica, seria possível concluir que, nos seres humanos, como ocorre nos outros animais superiores, a sede dos sentimentos morais ou afetividade localiza-se na região cerebral posterior e mais volumosa. Em contrapartida, a parte do cérebro “mais humana”, que se localizaria na região frontal do crânio, além de menos volumosa, seria também, segundo a expressão de Comte, a menos enérgica. Segundo Gall e seu discípulo Comte, naquela região cerebral de menor extensão e de atividade mais fraca é que estariam localizadas as faculdades intelectuais superiores.
A estática sociológica ou teoria positiva da ordem
Fundamentando-se em tais questionáveis descobertas da teoria frenológica das localizações cerebrais, Comte desenvolveu conceitos centrais da estática sociológica (ou teoria positiva da ordem). No Curso de Filosofia Positiva, ele afirma que a maioria dos seres humanos jamais desenvolverá a parte frontal – e mais humana – do cérebro e, além disso, sede das faculdades intelectuais superiores. A maioria ficará limitada eternamente aos desenvolvimentos da afetividade e dos sentimentos morais, cujos órgãos estão localizados na região cerebral posterior, mais volumosa e mais animal.
Esse estado pouco definido entre a animalidade e a humanidade, no qual se encontraria a quase totalidade dos seres humanos, não era, contudo, segundo Comte, algo que devesse causar preocupações. Do ponto de vista da harmonia, ou seja, da ordem social, na verdade, era bom que assim fosse. A maioria dos seres humanos, por ser dominada pela afetividade, poderia ter sua existência moldada conforme as exigências da doutrina social do “progresso dentro da ordem”. Por outro lado, a “elite da humanidade”, constituída pelo número reduzido daqueles que teriam desenvolvido a parte frontal do cérebro, deveria se dedicar às atividades intelectuais do raciocínio, vez ou outra fornecendo à sociedade “novos Sócrates, Homeros ou Arquimedes”.
Não é estranho, portanto, que, pouco a pouco, entrelaçando verdades positivas desse e de todo tipo, a sociologia comtiana tenha se transformado em religião da humanidade, nos anos posteriores a 1848. O começo contraditório abandonado afinal se relacionou com o fim dogmático, ou como escreveu Alfred de Vigny, o poeta predileto de Comte: “O que é uma grande vida? É um pensamento da juventude realizado na idade madura”.
Lelita Oliveira Benoit é professora de filosofia do
Centro Universitário São Camilo

Fonte: http://revistacult.uol.com.br/home/2011/01/auguste-comte/

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Primeiros conflitos: já previstos.


BRASÍLIA - A ordem da presidente Dilma Rousseff para que fossem suspensas as nomeações para o segundo escalão até fevereiro - uma forma de evitar novas brigas entre o PT e o PMDB por causa do domínio dos cargos - não virou lei nem dentro do Palácio do Planalto. Todos os dias o Diário Oficial da União traz novas nomeações para esses cargos, assinadas por uma única pessoa: o ministro Antonio Palocci, da Casa Civil, que despacha em um gabinete no quarto andar do Palácio.

Do dia 5, quando passou a valer a ordem de Dilma Rousseff, até ontem, Palocci assinou 208 nomeações e exonerações para cargos do segundo escalão, o que dá uma média de 23 por dia.

De acordo com o levantamento feito pelo Estado, boa parte dessas nomeações atende aos ministérios comandados pelo PT, como Comunicações e Saúde, que já foram do PMDB e agora se transformaram no ponto principal da discórdia dos dois partidos que comandam o Poder Executivo.

Origem

Foi por causa das nomeações do petista Helvécio Miranda Magalhães Jr. para a Secretaria de Atenção à Saúde (SAS), do Ministério da Saúde e de Mário Moysés para a presidência da Embratur que o PMDB ameaçou ir à guerra contra o PT.

Para pôr Helvécio Miranda na SAS, o PT desalojou de lá Alberto Beltrame, um protegido do PMDB. Essa secretaria conta com R$ 45 bilhões para gastar nesse ano, principalmente em repasses para o Sistema Único de Saúde (SUS). Trata-se de uma poderosa máquina geradora de votos para o partido que a comanda, pois o SUS está presente em todo o País.

Quanto à nomeação de Mário Moysés para a Embratur, esta também ajudou a incendiar a já conturbada relação entre PT e PMDB. Acontece que Moysés é ligado ao PT. Mas Antonio Palocci perguntou ao líder do PMDB na Câmara, Henrique Eduardo Alves (RN), se ele poderia transferi-lo da secretaria executiva do Ministério do Turismo - entregue aos peemedebistas - para a Embratur. Henrique Alves concordou. Logo depois, veio a demissão de Beltrame.

Traição

O PMDB acusou Palocci de traição. Henrique Alves bateu boca com o novo ministro da Saúde, Alexandre Padilha. Foi quando as relações entre os dois partidos entraram na fase crítica que levou a presidente Dilma a anunciar a suspensão das nomeações - o que acabou ficando só nas intenções.

Depois de uma breve pausa para que todos fizessem as pazes, com reuniões entre a presidente Dilma, Palocci, o vice-presidente Michel Temer e o líder Henrique Eduardo Alves, as nomeações ficaram suspensas por pouco tempo. A ideia de suspender definições para o segundo escalão partiu do próprio Temer, como forma de conter insatisfações do PMDB e evitar que o partido pudesse retaliar o governo em votações no Congresso.

O centro das preocupações do Planalto era que o mal-estar pudesse afetar a votação das presidências da Câmara e do Senado.

Inicialmente, após o acerto, o Diário Oficial só publicou nomeações negociadas entre as duas siglas. Mas, com as nomeações feitas para o Ministério da Integração Nacional, em que integrantes do PSB varreram peemedebistas deixados lá pelo ex-ministro Geddel Vieira Lima, o PMDB voltou a reagir.

Trégua

Coube então ao ministro Antonio Palocci começar a nomear os indicados pelo PMDB, mais uma forma de aplacar a ira do partido.

Nesta quarta-feira mesmo deverá tomar posse na presidência do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) Mauro Hauschild, indicado pela ala do PMDB liderada pelo presidente do Senado, José Sarney (AP) e pelo líder do partido no Senado, Renan Calheiros (AL).

O cargo era dominado pelo PT, que comandava o setor desde a primeira posse de Luiz Inácio Lula da Silva, em janeiro de 2003.

A Previdência sempre entrou na cota dos ministérios estratégicos do PT. Mas, com Dilma, acabou sendo entregue ao PMDB, numa tentativa de compensar as perdas nas pastas das Comunicações e da Saúde.

A nomeação de Hauschild foi assinada no dia 14 por Palocci. O posto de presidente do INSS é um dos mais cobiçados e está na cota do PMDB, que passou a ter o domínio do Ministério da Previdência Social, ao qual a autarquia é subordinada.

O novo ministro da Previdência, senador Garibaldi Alves (PMDB-RN), utilizou a cerimônia de transmissão do cargo para qualificar o ministério de "um abacaxi".

Junto com Hauschild, Palocci nomeou Jaime Mariz de Faria Jr e Rogério Nagamine Costanzi para cargos na Previdência Complementar e no Regime Geral de Previdência. Neste mesmo dia foi publicada a exoneração, assinada também pelo ministro Palocci, de Murilo Francisco Barella e João Donadon, ambos ligados ao PT.

FONTE:

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

A guerra contra as drogas - Fernando Henrique Cardoso


A guerra contra as drogas é uma guerra perdida e 2011 é o momento para afastar-se da abordagem punitiva e buscar um novo conjunto de políticas baseado na saúde pública, direitos humanos e bom senso. Essas foram as principais conclusões da Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia que organizei, ao lado dos ex-presidentes Ernesto Zedillo, do México, e César Gaviria, da Colômbia.

Envolvemos-nos no assunto por um motivo persuasivo: a violência e a corrupção associadas ao tráfico de drogas representam uma grande ameaça à democracia em nossa região. Esse senso de urgência nos levou a avaliar as atuais políticas e a procurar alternativas viáveis. A abordagem proibicionista, baseada na repressão da produção e criminalização do consumo, claramente, fracassou.

Após 30 anos de esforços maciços, tudo o que o proibicionismo alcançou foi transferir as áreas de cultivo e os cartéis de drogas de um país a outro (conhecido como efeito balão). A América Latina continua sendo a maior exportadora de cocaína e maconha. Milhares de jovens continuam a perder as vidas em guerras de gangues. Os barões das drogas dominam comunidades inteiras por meio do medo.

Concluímos nosso informe com a defesa de uma mudança de paradigma. O comércio ilícito de drogas continuará enquanto houver demanda por drogas. Em vez de aferrar-se a políticas fracassadas que não reduzem a lucratividade do comércio - e, portanto, seu poder - precisamos redirecionar nossos esforços à redução do consumo e contra o dano causado pelas drogas às pessoas e sociedade.

Ao longo da história, sempre existiu algum tipo de consumo de droga nas mais diversas culturas. Hoje, o uso de droga existe por toda a sociedade. Pessoas de todos os tipos usam drogas por motivos de todos os tipos: para aliviar dores ou experimentar prazer, para escapar da realidade ou para incrementar a percepção dela.

A abordagem recomendada no informe da comissão, no entanto, não significa complacência. As drogas são prejudiciais à saúde. Minam a capacidade dos usuários de tomar decisões. O compartilhamento de agulhas dissemina o HIV/Aids e outras doenças. O vício pode levar à ruína financeira e ao abuso doméstico, especialmente de crianças.

A capacidade das pessoas de avaliar riscos e fazer escolhas estando informadas será tão importante para regular o uso das drogas quanto leis e políticas mais humanas e eficientes. A repressão aos usuários de drogas é também ameaça à liberdade.

Reduzir o consumo o máximo possível precisa, portanto, ser o objetivo principal. Isso, contudo, requer tratar os usuários de drogas como pacientes que precisam ser cuidados e não como criminais que devem ser encarcerados. Vários países empenham-se em políticas que enfatizam a prevenção e tratamento, em vez da repressão - e reorientam suas medidas repressivas para combater o verdadeiro inimigo: o crime organizado.

A cisão no consenso global em torno à abordagem proibicionista é cada vez maior. Um número crescente de países na Europa e América Latina se afastam do modelo puramente repressivo.

Portugal e Suíça são exemplos convincentes do impacto positivo das políticas centradas na prevenção, tratamento e redução de danos. Os dois países descriminalizaram a posse de drogas para uso pessoal. Em vez de registrar-se uma explosão no consumo de drogas como muitos temiam, houve aumento no número de pessoas em busca de tratamento e o uso de drogas em geral caiu.

Quando a abordagem política deixa de ser a de repressão criminal para ser questão de saúde pública, os consumidores de drogas ficam mais abertos a buscar tratamento. A descriminalização do consumo também reduz o poder dos traficantes de influenciar e controlar o comportamento dos consumidores.

Em nosso informe, recomendamos avaliar do ponto de vista da saúde pública - e com base na mais avançada ciência médica - os méritos de descriminalizar a posse da canabis para uso pessoal.

A maconha é de longe a droga mais usada. Há um número cada vez maior de evidências indicando que seus danos são, na pior hipótese, similares aos provocados pelo álcool ou tabaco. Além disso, a maior parte dos problemas associados ao uso da maconha - desde o encarceramento indiscriminado dos consumidores até a violência e a corrupção associadas ao tráfico de drogas - é resultado das atuais políticas proibicionistas.

A descriminalização da canabis seria, portanto, um importante passo à frente para abordar o uso de drogas como um problema de saúde e não como uma questão para o sistema de Justiça criminal.

Para ter credibilidade e eficiência, a descriminalização precisa vir acompanhada de campanhas sólidas de prevenção. O declínio acentuado e persistente no consumo de tabaco nas últimas décadas mostra que as campanhas de prevenção e informação pública podem funcionar, quando baseadas em mensagens consistentes com a experiência das pessoas que são alvo desses esforços. O tabaco foi desglamourizado, tributado e regulamentado; não foi proibido.

Nenhum país concebeu uma solução abrangente ao problema das drogas. A solução, no entanto, não exige uma escolha cabal entre a proibição e a legalização. A pior proibição é a proibição de pensar. Agora, enfim, o tabu que impedia o debate foi quebrado. Abordagens alternativas estão sendo testadas e precisam ser cuidadosamente avaliadas.

No fim das contas, a capacidade das pessoas de avaliar riscos e fazer escolhas estando informadas será tão importante para regular o uso das drogas quanto leis e políticas mais humanas e eficientes. Sim, as drogas corroem a liberdade das pessoas. É hora, no entanto, de reconhecer que políticas repressivas em relação aos usuários de drogas, baseadas, como é o caso, em preconceito, medo e ideologia, são da mesma forma uma ameaça à liberdade.

Fernando Henrique Cardoso é ex-presidente do Brasil (1995-2002), copresidente da Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia e organizador da Comissão Global sobre Políticas para Drogas.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

A política sem sombra e água fresca:: Luiz Werneck Vianna


A política sem sombra e água fresca:: Luiz Werneck Vianna
Previsões falham, mas ninguém atentaria para elas se nunca se confirmassem. As que tratam do tempo, ressalve-se, estão cada vez mais precisas, amparadas em refinados métodos dos serviços meteorológicos, embora não se possa dizer o mesmo das que têm como objeto os fenômenos da política, uma vez que, por meio da ação humana, o curso dos acontecimentos pode apresentar resultados inesperados até para o ator que procurou intervir consciente e racionalmente sobre eles. Há, contudo, previsões nessa matéria, como a história não nega, que se demonstram acertadas, e um modesto e recente exemplo delas foi a de que a política, como atividade social generalizada, retornaria à cena pública brasileira logo que se cumprissem os efeitos da transmissão do mandato de Lula ao seu sucessor.

Os oito anos da presidência Lula se caracterizaram pela incorporação ao Estado e à sua máquina governamental de representações de classes e categorias sociais, tanto das elites financeiras, da indústria e dos serviços, quanto daquelas com origem no mundo do trabalho e na multiplicidade dos movimentos sociais. Tal formatação de estilo corporativo, ainda se fez reforçar com a criação, em 2003, do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, com o qual se instituiu um parlamento paralelo, composto por aquelas representações, em que se tentou emprestar à dimensão dos interesses uma vocalização que prescindiria da política e dos partidos.

Sob essa modelagem, a explicitação dos interesses devia contornar o campo da sociedade civil, sendo conduzida para o interior do Estado e de suas agências. Nos casos de conflitos entre eles, seriam submetidos à arbitragem do chefe do Executivo, considerado como um intérprete privilegiado do interesse público, o campo da política convertido em monopólio seu. Tal construção, que evocava antigas práticas e instituições da era Vargas, dependia da reconhecida capacidade de Lula nas artes da negociação e se fazia escorar na legitimação do seu governo pelos sortilégios do carisma.

Agitação política do início da gestão Dilma sinaliza o que virá

O governo Dilma, por suas características pessoais e pelas novas circunstâncias reinantes no mundo, não tem como imprimir continuidade a esse modelo e ao estilo de governo do seu antecessor. Ademais, algumas mudanças na posição relativa de alguns atores, parte delas fruto de políticas levadas a cabo pelo próprio Lula, alteraram a cena anterior. Talvez um dos maiores exemplos disso se encontre no mundo sindical, em que, a partir da abdicação do PT de suas posições reformadoras, como as que foram apresentadas por ocasião do Forum sindical, em 2004, e de suas concessões ao sindicalismo corporativo tradicional, tal como na inclusão das centrais sindicais no rol das entidades a serem contempladas com os recursos extraídos do chamado imposto sindical, conduziu ao fortalecimento de correntes rivais à CUT.

A Força Sindical, além de ancorada em uma representação parlamentar que integra a coalizão governista, conta em seus quadros com importantes militantes vinculados ao PDT, partido do atual ministro do Trabalho, Carlos Lupi, forte indicação de que suas controvérsias com o atual governo sobre o valor do salário mínimo, transcendem uma simples querela sobre matéria salarial. Na verdade, elas já admitem a hipótese de que o modelo Lula de fazer política, sem a presença do seu idealizador, começa a dar sinais de exaustão - os conflitos de interesses já ameaçam escapar do interior do Estado e migrar para o espaço aberto da sociedade.

De outra parte, alguns partidos, até há pouco apendiculares à coalizão governamental, encorparam a sua representação, caso tanto do PSB como do PDT, se se considera a sua crescente projeção no mundo sindical, o primeiro deles com óbvias ambições presidenciais da sua principal liderança, esses e outros emitindo sinais de que aspiram por um tipo de poder que as práticas da mera fisiologia não satisfazem. De passagem, vale notar que a emergência desses partidos, além de tantos outros, caso do PR, devem o seu crescimento ao lugar que ocuparam à sombra de Lula, e não à capacidade de encantamento dos seus programas e/ou do seu enraizamento capilar na vida social.

Mas, sem Lula tendem a escassear a sombra e água fresca, e a agitação política desses primeiros dias de Dilma é um sintoma do que vem por aí, quando esquentar de fato a disputa pela presidência da Câmara Federal e pela tramitação do Código Florestal, a essa altura com a questão ambiental bafejada pelos 20% de votos da Marina e pela tragédia que se abateu sobre as cidades serranas do Estado do Rio. Sondando riscos no horizonte, a presidente, informa o noticiário político, fez retirar da sua agenda imediata os temas das reformas - tributária, política, previdenciária e trabalhista -, que serão fatiadas, quando possível, ou postergadas para momentos mais propícios.

Ao contrário dos tempos de Lula, perdedores serão selecionados. Os partidos que cresceram à sua sombra, de algum modo, já entenderam isso. Até por eles, e com eles, a política volta, porque fora dela terão muita dificuldade de sobreviver, em particular se a democracia brasileira afinal reagir, como se espera, contra essa aberrante legislação político-eleitoral que aí está.

O nome do novo tempo é racionalização, mais e melhor com menos, política de resultados e não de manipulação simbólica - a ordem burguesa a ser consolidada por Dilma deverá ser implacável com a metafísica que, em nome de uma suposta comunidade nacional, abrigaria todos os interesses em pé de igualdade no interior do Estado. O tempo ainda é curto para que se saiba para onde vai o seu governo, mas, desde logo, está claro: ela não veio para arbitrar, e sim para gerir. Não importa que a tomada desse rumo tenha sido ou não planejada, inclusive porque há poderosos constrangimentos sistêmicos a reclamar a mesma direção. Os interesses são devolvidos às suas instâncias de origem, como as centrais sindicais, talvez surpreendidas, estão percebendo agora, e cabe a seus autênticos portadores zelar por eles. Essa bem pode ser a porta de reingresso da política no nosso mundo, quem sabe até dando a conhecer novos partidos.

Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador do Iesp-Uerj. Ex-presidente da Anpocs, integra seu comitê institucional.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Economicismo sem limites.


"O Presidente do IBAMA se demitiu ontem devido à pressão para autorizar a licença ambiental de um projeto que especialistas consideram um completo desastre ecológico: o Complexo Hidrelétrico de Belo Monte.

A mega usina de Belo Monte iria cavar um buraco maior que o Canal do Panamá no coração da Amazônia, alagando uma área imensa de floresta e expulsando milhares de indígenas da região. As empresas que irão lucrar com a barragem estão tentando atropelar as leis ambientais para começar as obras em poucas semanas.

A mudança de Presidência do IBAMA poderá abrir caminho para a concessão da licença..."

Tal citação foi transcrita de um e-mail que recebi de um grupo de mobilização social, Avaaz, que lutou por várias causas como o projeto ficha limpa, pela libertação de Sakineh, no Irã, entre muitas outras causas. O Avaaz é um grupo que cotidianamente levanta a bandeira do desenvolvimento social, econômico- sustentável, político, etc.
A partir desse email que recebi, trabalharei por escrito nesta página a questão da dialética HOMEM vs. NATUREZA, e a subordinação das esferas culturais, sociais e políticas à econômica, característica do desenvolvimento capitalista industrial visto nas obras de Marx.
O que se passa em "Belo Monte" é mais um símbolo do desenvolvimento capitalista mundial, ou seja, um grupo de empresários da esfera privada atuando junto com a esfera pública - o Estado -, e talvez, confundindo estas duas esferas, transformando o público no privado, como ocorre muito em nosso país.
Dentro da lógica da produção é clara a idéia de "produção primitiva", objetivada no trabalho com a matéria prima para alcançar o produto manufaturado, elevando assim seu valor de uso- troca. Em "Belo Monte", a matéria prima nada mais é que a própria natureza (ecossistemas, entre outras categorias biológicas), e o produto manufaturado é o Complexo Hidrelétrico de Belo Monte, com todos seus pilares de concreto que transformará a água, a cultura das comunidades que ali habitam (indígenas, pescadores, etc.) e o próprio ecossistema em dinheiro; dinheiro esse repassado apenas a uma parcela de empresários investidores.
Para construir é preciso destruir (alguns preferem o termo transformar do que destruir). Essa é a lógica do capitalismno. O homem em sua indústria, visando sempre a produção, consumo e lucro, vive numa constante diáletica com a natureza, fonte ESGOTÁVEL de matéria prima.
A justificativa para a construção de Belo Monte é clara: DESENVOLVIMENTO. Mas, esse desenvolvimento se dá apenas na esfera econômica, ou abrange outras esferas como o social e cultural? Há de se pensar que essa construção irá "submergir" grande parte da história indígena e de outras comunidades que habitam a região projetada para o Complexo Hidrelétrico. Para esses fortes representantes do capitalismo moderno, a história dessas comunidades e tribos nada significa perto do "desenvolvimento" que a Usina irá trazer. Essa é outra característica do capitalismo, transformar tudo em lucro, visar somente o lucro, tornar tudo mercadoria para jogar no mercado e, visando somente o lucro.
Não há de se negar que a construção do Complexo Hidrelétrico levará energia elétrica para muitas casas do país, casas que talvez acenderão suas primeiras lâmpadas elétricas. É a contra- mão do projeto. Porém, como culturalista e pró meio ambiente, penso ser muito mais viável por em prática projetos sustentáveis que trabalhem com energia "limpa", de fontes renováveis, que protejam os direitos indígenas e das comunidades locais, promovendo o desenvolvimento social e econômico local.